Resenha: A Política Sexual da Carne, de Carol J. Adams
Resenha do livro A Política Sexual da Carne, de Carol J. Adams.
Por Bruna Paludo
A Política Sexual da Carne, o livro de Carol J. Adams, é um tesourinho de coerência e didática.
A autora compara a opressão sofrida pelas mulheres e o consumo de animais como resultado de seus papéis na sociedade patriarcal, embasando-se no que ela mesma chama de “referencial ausente”, no qual o objeto a ser consumido (figurativamente o corpo da mulher e literalmente o corpo do animal) é separado/alienado do indíviduo, como ser inteiro.
Política sexual da carne, nas palavras da autora, significa uma atitude e uma ação que animaliza mulheres e sexualiza e efemina os animais. A mulher, animalizada; o animal, sexualizado. A política sexual da carne também pode ser entendida como a presunção de que os homens precisam de carne e têm direito a ela, assim como o consumo de carne é uma atividade masculina associada à virilidade. Por exemplo, a imagem cultivada de Bush como “fazendeiro/cowboy” fazia parte da construção de uma imagem de macho “que decide”.
(O filósofo Jacques Derrida também fala sobre a política sexual da carne, utilizando a ideia de “carnofalogocentrismo”, conectando o ego masculino ao consumo da carne pelo “macho alfa”.)
Alguns trechos do livro são tão didáticos que o melhor que eu posso fazer é simplesmente transcrever. Como esse, por exemplo: “por trás de toda refeição com carne há uma ausência: a morte do animal cujo lugar é ocupado pela carne. O ‘referente ausente’ é o que separa o carnívoro do animal e o animal do produto final”. Se prestarmos atenção nas propagandas dos frigoríficos, a intenção é evitar que ~algo~ seja visto como tendo sido um ser. Nessas propagandas, a imagem de um bife não está ligada a nada, a nenhum ser que precisou morrer, e esse mesmo tipo de estratégia é usada frequentemente para refletir o status feminino. Nas propagandas de cerveja, por exemplo, a mulher não é um ser inteiro, ela é uma bunda, um par de peitos, uma barriguinha, uma boca bonita e apenas isso (ou seja: a mulher é um pedaço de carne, pronta para ser consumida, um objeto).
A ideia de que o consumo da carne é algo simples e natural se origina na mesma fonte que diz que os homens são naturalmente dominantes e violentos e que as mulheres são naturalmente submissas e cuidadoras (leia-se incubadoras). Não é à toa que tradicionalmente os homens caçavam e as mulheres plantavam. Não é à toa que tradicionalmente os homens fazem o churrasco e as mulheres fazem a salada. Acreditar que o consumo predatório é algo natural e imutável implica em acreditar que os homens são naturalmente violentos e dominadores. Mas quem acredita em destino biológico?
Nós feministas nos apoiamos na relevância da cultura e da criação social de um sujeito, e não raramente lutamos contra argumentos que se utilizam da “natureza imutável”.
Se isso serve para as mulheres por que não serviria também para os animais? Será que ainda podemos acreditar que os seres humanos são especiais, superiores, e donos da natureza? Qual seria o fundamento da nossa superioridade perante às demais espécies?
Legal sua namorada nova. Qual é a raça dela?
Ao pensarmos sobre estas questões precisamos nos lembrar do que a filósofa feminista Sandra Bartky escreveu: a consciência feminista transforma um “fato” numa “contradição”. Ou seja, sempre há espaço para a dúvida. E a minha intenção aqui se restringe à dúvida. Sei que existem diversos feminismos, e respeito todos eles. Não tenho a mínima intenção de caçar carteirinhas de feministas que comem animais e menos ainda de diminuir qualquer pessoa. Estou questionando estruturas, e não pessoas em particular. Como disse Adams, “obviamente o consumo de carne é um hábito e a inércia milita contra a mudança”. E a cultura do consumo de animais contribui para essa inércia haja vista o amplo apoio de governos e grandes corporações à indústria da pecuária. Pesquisas encomendadas por frigoríficos e mitos dos mais diversos contribuem para que continuemos estacionados quanto a este hábito. Associada à propaganda da carne, contribue também para essa inércia o fato de que refeições veganas ainda são restritas a pessoas com boas condições financeiras (quem hoje tem tempo para cozinhar todo dia e fazer pratos variados que, de fato, possam suprir os nutrientes de origem animal?).
Não estou pedindo pra ninguém se converter a uma religião. Estou apenas tentando iniciar uma discussão lógica e racional a respeito do consumo de animais e sua conexão com o feminismo. Lembrando que o privilégio repele o autoexame, e no especismo todos nós, seres humanos, somos os opressores.
E, por fim: estou falando do livro “A Política Sexual da Carne”, da Carol J Adams, mas as imagens que ilustram esse post são de outro livro dela, intitulado “A Pornografia da Carne“.
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