Colorismo e interpretação de texto
Nessa semana me envolvi numa treta no site feices. Depois de ter decidido que não ia mais tretar por lá, que ia me limitar a tirar uns sarros, salvar memes e gifs, eis-que-me-vi no olho do furacão. Explico: tenho uma amiga famosa, a Winnie Bueno. Negona da porra que manja dos paranauês. Ela postou uma simples frase, pedindo que mulheres brancas deixassem de ir à marcha das mulheres negras.
Óbvio, pensei.
Fui lá, dei meu jóinha básico e humildemente acrescentei: negras de pele clara, não tomem a frente.
E o apocalipse se deu.
Eu pensei que a postagem da Winnie era do campo do óbvio, mas já imaginava certa repercussão. Ela é figura pública na web e também cada vez que a gente sugere que brancxs saiam do centro do palco é um surto coletivo de dar dó.
Sobre o meu comentário achei que ia passar batido, apesar de ser tema controverso entre xs pretxs, o colorismo todo mundo vê.
MASSSS NÃÃÃOOOOO.
Eu tô querendo desunir o movimento. Sendo intolerante. Maluca.
E recebi mensagens inbox e comentários em tudo que é rede em que é possível identificar meu nome pouco comum. Teve gente dizendo que eu barraria a Angela Davis da marcha (poderosa eu né?), que eu acho um absurdo a Rosa Parks ter participado de marchas (queria saber em que entrevista eu disse isso), que eu contrario as orientações de Martin Luther King (não achei as ditas, mas enfim…) e a que mais me doeu: teve gente me acusando de fantasiar meu filho de negro na foto de capa do meu perfil no Facebook. Fiquei muito assustada.
Não temos a real dimensão dessa rede antes de passar por uma coisa dessas.
Mas a resiliência é ancestral aqui. Então, fiz disso um aprendizado. E aproveitei para constatar umas ideias antigas.
Constatei que falta amor e interpretação de texto mesmo.
Constatei que falta amor e interpretação de texto mesmo. E que o padrão do colonizador, de reduzir qualquer frase diferente do que EU penso a mimimi do outro e fazer disso “causa” de batalha triunfou de fato. Não faltou gente reproduzindo discurso “não existe cor, somos todos humanos” e reduzindo o meu posicionamento com o “somos todos iguais”.
Constatei que o pensamento binário herdado da cristandade medieval vigora e tem força. É tudo resolvido na base do bem contra o mal, ou é isso ou aquilo. Não tem meio termo.
Constatei que sou flexível, forte e sensível o suficiente para ler comentários desrespeitosos e não odiar quem os emitiu (aqui agradeço a Mamis).
Li muito lixo, mas li coisas que me fizeram crescer.
E daí resolvi escrever essas linhas. Escurecer a questão para os meus.
Como assim para os meus?
Não tô nem aí para o quê os tipos “brancxs-Bolsonaro2018” enviaram no meu inbox. Deletei e segui a vida.
Mas senti obrigação de responder, de alguma forma, as questões levantadas pelas mulheres negras.
Algumas críticas foram duras, mas necessárias. Li, pensei sobre e absorvi. Recebi alguns apoios reconfortantes. Li, me acalmei e sorri.
O bom foi notar que maioria já percebe o quanto o racismo no Brasil é um fenômeno discursivo, social, estrutural e estruturante. Mas a questão fenotípica foi perigosamente colocada em segundo plano, sob meu ponto de vista.
A maioria percebe que racismo é um fenômeno discursivo, social, estrutural e estruturante.
E explico: não pode ser novidade para negras e negros que o branqueamento da população brasileira foi uma política de Estado. A miscigenação é a base da democracia racial. Para o progresso da nação era importante eliminar o máximo possível a herança africana, considerada degenerante. Existe um padrão para aceitação para negros e negras que passa por uma escala de tom de pele. Isso faz parte do racismo e é preciso compreender isso.
Colorismo é o nome que se dá geralmente a esse fenômeno. E ele também foi e é muito útil para desmobilizar negros e negras. Estratégia desde os tempos de senzala: negras claras podem trabalhar na casa grande, negros claros são promovidos a capitão do mato. E atualizada: negras claras são bonitas (cabelos cacheados e não crespos, nariz afinado) e negros claros podem ter empregos “visíveis” (vendedor na loja do shopping, mas com a cabeça raspada ok?).
Vou dar um exemplo bem fácil de acompanhar: novelas da Globo. Homens negros retintos são os traficantes de arma na mão; homens negros mais claros “conquistam” papéis mais aceitáveis, subordinados, mas aceitáveis. Mulher negra retinta cabe no papel de empregada solteira (devotada a família branca a quem serve), mulher negra bem sucedida, geralmente a amiga “gente boa” de uma protagonista branca, é papel para negra de pele mais clara, cabelo cacheado (nada de 4C) e corpo “tipo exportação”.
O racismo nos oprime, mas de maneiras distintas. Ele age em degradê no corpo e no discurso. A “cordialidade” do racismo é direcionada aos de pele mais clara. E são os corpos pretos mais retintos os primeiros a tomar bala da polícia e a serem olhados com desconfiança na rua.
O racismo age em degradê. No corpo e no discurso.
Não quero me alongar muito aqui, mas a base do meu raciocínio é essa. E é acrescida da minha vivência como uma mulher negra de pele clara.
Minha mãe é branca. E quando ela se apaixonou, casou e teve filhas com um homem negro ela encarou o desafio de educar duas meninas negras num mundo onde “passou de branco, negro é”. Sem ler bell hooks, Angela Davis ou qq coisa que o valha ela entendeu que eu e minha irmã seríamos bombardeadas pelos dois lados de um mesma moeda: não tão pretas pra serem “negras de verdade” e não tão brancas “pra serem inteligentes”. E nunca me deixou titubear sobre a minha ascendência, minha ancestralidade. Me ensinou a amar meu cabelo, meu quadril largo, e também a amar meu nariz mais afinado. (agradeço a cada dia a minha mãe por isso. Acredito que a vivência dela como uma mulher de periferia foi fundamental nesse processo).
Ela tava prevendo as merdas que eu iria ouvir. Ela de alguma forma sabia que eu iria viver nesse limbo maldito. Eu sou a “sarará sem bandeira”, “mulata”, “mestiça”, “parda”, “nem-é-tão-negra-assim”.
O limbo a que me refiro se dá da seguinte forma: negrxs mais claros são tolerados pela branquitude (mas ser tolerado não é ser aceito). E esses mesmos indivíduos são vistos com desconfiança pela comunidade negra por terem sido em algum nível aceito pela branquitude.
E isso é parte do racismo.
“A presença de pessoas negras, cujos traços físicos são mais aceitos pela branquitude, em espaços que ela pretendia manter exclusivamente brancos, provoca a camuflagem do racismo ainda vigente na nossa sociedade.” (Aline Djokic, no Blogueiras Negras, via Geledés)
Mais contemporaneamente na minha vida essas questões subiram para o topo da minha agenda por conta das discussões que tenho feito com as Atinukés (grupo de estudos de mulheres negras). Após cada reunião do grupo mais ciente fico do quanto o colorismo existe pra nos matar aos poucos, pra nos desunir. E passei a perceber que cada vez que eu tomo a frente levo comigo a marca da “negra aceitável” e colaboro, mesmo que sem querer, sem ver, ser perceber, para que uma mana mais escura que eu seja invisibilizada cada vez mais.
Aos poucos, fui percebendo que meu cabelo com cachos “em ordem” também são um padrão criado pelo mundo branco para domesticar minhas irmãs. Que minha pele mais clara e a bunda grande se transformaria no modelo “mulata tipo exportação” que leva pra coxia minhas irmãs escuras.
Ter a pele mais escura te expõe mais ao racismo.
Ter a pele mais escura te expõe mais ao racismo. Essa é uma realidade dura e cruel. Se eu não compreendo isso acabo reproduzindo mecanismos que oprimem as negras mais escuras. Se me coloco na linha de frente reforço a invisibilidade das outras, por que sou mais aceitável ao colonizador.
No fundo, no fundo eu só queria que algumas criaturas que me acharam louca a propor um passo atrás das negras de pele clara, entendessem que eu disse um passo atrás, não “saiam da marcha”.
Eu tenho feito isso sempre que posso. Eu vejo os meus “sub-privilégios” e tento ressignificá-los. Ser mais escuro ou mais claro não te faz menos ou mais negro, mas te expõe ao racismo de formas diferentes e precisamos reconhecer e compreender isso para organizar estratégias de luta e fortalecimento. Não vejo possibilidade de empatia sem alteridade.
Dar um passo atrás na Marcha, para mim é a forma de dizer as minhas irmãs retintas: “Reconheço e me identifico com a tua dor, minha existência não é ameaça. Conta comigo.”.
Acho que por hoje é isso. Talvez não tenha explicado da melhor forma, mas essa é a forma que eu posso fazer.
Por Sherol dos Santos
Imagem: IMDb (still do filme de 1988 School Daze, dirigido por Spike Lee, que aborda colorismo no contexto das escolas e universidades estadunidenses)
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