Meu inimigo declarado
Das muitas hashtags (#PrimeiroAssédio, #Enem2015, #NãoÀPL5069, #AgoraÉQueSãoElas…) que uniram as mulheres da internet e ajudaram a moldar a #PrimaveraFeminista de 2015, uma em particular demonstrou uma força, digamos, interessante: #MeuAmigoSecreto.
Utilizada para expor comportamentos abusivos que configuram o que chamamos de machismo, e que frequentemente permanecem velados, o efeito da campanha foi uma catarse coletiva, que trouxe à tona revelações que surpreenderam apenas quem não está acostumado a sofrer violência de gênero.
Imagem acima: Carolina Ito, do Salsicha em conserva
A grande sacada da campanha foi o ~amigo ser ~secreto. Ao usar uma hashtag que aborda um problema, e não os indivíduos que o perpetuam, talvez as mulheres tenham se sentido mais seguras para revelar suas experiências com machismo sem precisar apontar dedos para o machista. Isso, além de poupar quem ousa falar sobre sua dor de retaliações potencialmente violentas, também contribui para a despersonalização dos comportamentos machistas. Ou seja, fica evidente que “O Machista” não é só aquele indivíduo-jece-valadão, sabe? O machista é o pai, o amigo, o namorado, o primo, o sobrinho, o tio, o colega, o chefe, o parceiro de luta feminista… eu, ou você.
O amigo ser secreto ajudou a demonstrar algo que nós, feministas, viemos dizendo há anos (séculos): não é que a gente enxerga machismo em tudo, o machismo está em tudo. Ele é naturalizado justamente por ser estrutural, sistêmico, constitutivo da nossa sociedade. (Bônus: isto é o patriarcado.) Se isso não fosse verdade a campanha não teria viralizado: as mulheres simplesmente reconheceram, nas histórias das outras, situações pelas quais todas passamos.
Isso possibilita uma virada importante no entendimento do discurso feminista, que sempre insistiu que o pessoal é político. Quem pensa que #meuamigosecreto é apenas uma brincadeira de mau-gosto para distribuir indiretas talvez não tenha percebido a importância do que essa massa crítica de diretas produziu.
A Mandíbula fez algumas compilações interessantes com os dados (para ver tudo, clique aqui). Observe a nuvem das palavras mais utilizadas nos posts relacionados à hashtag:
Quem está familiarizada com a luta feminista pode facilmente reconhecer seu discurso nessa nuvem. E não é de hoje que falamos sobre tudo isso; a #meuamigosecreto apenas permitiu que todas contássemos esses causos de forma jocosa, segura e, importantemente, unificada.
Já a imagem abaixo mostra quais foram os tweets mais populares da campanha e, de novo, a gente enxerga uma repetição do que o feminismo vem dizendo há muito tempo: chega de hipocrisia misógina, e não, o fato de querermos que isso acabe não é ~~~falta de rola.
O conhecimento que a campanha produziu (e reproduziu) demonstra que #meuamigosecreto não é nem amigo, nem secreto. É, sim, nosso inimigo mais declarado: o patriarcado. Essa hashtag transformação (como a #PrimeiroAssédio antes dela) possibilitou que mulheres dos quatro cantos do Brasil abrissem os porões do machismo e da misoginia que enfrentamos caladas desde sempre. Nada do que foi escrito era novidade para as mulheres. O que é novidade é que, se antes nos calavam, hoje #não #conseguem.
Imagem acima: Arieli Corrêa.
Avante, mulherada. O patriarcado não vai se expor nem se desconstruir sozinho. E ações como estas, apesar dos mal-entendidos que elas inevitavelmente causam, são evidência de que estamos fazendo um belíssimo trabalho.
Por Joanna Burigo
Foto de capa: Femma Registros Fotográficos
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