Os descartáveis pelos das mulheres

Um dia desses qualquer, lá pelo início dos anos 90, eu começava a andar com saias novamente, porque aos 14, 15 anos, eu havia chegado a um corpo de adolescente. Antes, pernas magras e ossudas de quem cresceu pra cima mas não cresceu para os lados me faziam alvo de bullying e eu só usava calcas largas (na época foram chamadas de baggies).

Ser aceita pela sua aparência ¨natural¨ é algo indescritível. E é também algo que eu nunca consegui em determinados aspectos.

O modelo padrão de beleza feminina é um conjunto de imposicões que não cabe na realidade da maioria das mulheres. Sempre estão exigindo corpos que se encaixem em ideias. Uma certa magreza, algumas curvas em determinados lugares, usar determinadas roupas para determinadas situações, “melhorar” a aparência do rosto com maquiagem, que biologicamente pode ser explicado com a aparência que as mulheres adquirem quando estão férteis, cabelos compridos, penteados complicados e demorados. Tudo isso para parecer naturalmente algo que não é.

Uma das coisas que realmente pega pesado nessa história é a depilação. Raspagem, depilação ou retirada dos pelos das pernas, virilha, púbis e axila com químicos ou laser, é algo que desafia toda a lógica, em todos os sentidos. Como eu dizia no começo do texto, um dia eu andava por aí, mostrando as minhas pernas com saias acima do joelho. Por algum tempo, o que normalmente acontecia era o assédio dos homens. Pernas de fora, ui. Nem parecia que estávamos no século 20, mas já era esperado.

Mas um dia, quando eu estava para fazer 16 anos, um fenômeno social começou a acontecer. De um dia para o outro, eu comecei a ser apontada na rua. Pessoas, homens e mulheres, passaram a rir de mim e de muitas outras mulheres. Riam e apontavam e cochichavam. Era o cabelo assim e assado. Era o corpo. Era uma mancha de menstruação. Era o fio do absorvente interno despontando do biquíni. E pior: eram os pelos.

Num dia, eu tinha pelos nas pernas e era normal. No outro dia, amigas vieram me alertar que, agora que eu era uma mulher, tinha que raspar os pelos das pernas.

Wait, what?

Na época, lembro de questionar vagamente. Mulheres raspam as pernas? Pra que? A resposta: ah, é igual fazer a barba (acho). Esse acho é bem a cara dessa lógica. Homens fazem a barba porque lá nascem pelos, a gente raspa as pernas porque lá nascem pelos. É sinal de higiene. Sinal de higiene? Sim, sim, porque você vai suar e o suor vai te deixar toda melada e fedida.

Hã?

Muitas dúvidas. Muitos questionamentos. Vocês estão sabendo, é claro, que muitas mulheres passam por essa lavagem cerebral, certo? Se não sabiam, atentem para os fatos. Pode ser a vidinha no interior que seja mais rígida e nas cidades de maior porte as mulheres nunca passem por isso. A gente no interior passa. Não todas. Mas todas do meu background mais humilde passam.

A lógica é que homens fazem barba, cabelo e bigode para parecerem “asseados”. Onde fui criada, conheço mulheres que denominavam a raspagem de axilas, virilha e pernas como a “barba, cabelo e bigode” das mulheres. Tá, se isso for verdade… por que homens não raspam axilas, virilha, pernas (e peito, e costas) com a mesma obrigatoriedade? Por que a diferenciação?

Sei muito bem que homens e mulheres são diferentes, mas por que temos de ser diferentes em coisas que somos iguais?

Outro dia, postei na minha linha do tempo uma imagem que mostrava uma mulher raspando pernas, axilas, virilha, púbis e os pelos da região anal. A última imagem era a da mulher deitada na cama, à espera do parceiro. Que vinha com barba, com pelos nas pernas, no peito, nos bracos, nas costas. A mulher estava visivelmente com cara de “err…”. Com sorriso amarelo. De ter que aceitar aquele ser peludo.

Vamos questionar aqui, só por um minuto: sim, temos que aceitar os pelos no corpo do homem por algum sinal bizarro de virilidade. Vai ter até mulher que diz que manda o companheiro raspar também porque não tolera pelos no corpo. Por que os pelos no corpo da mulher seriam falta de higiene? Eu já vi sebo em axila masculina. Dizem que barbas são bem sujas também.

Por que não podemos questionar a obrigatoriedade de tirar os pelos no corpo feminino? Por que não podemos exigir que nos aceitem com pelos? Que nos vejam bonitas com pelos?

Vejam bem, não temos escolha. Muitas de nós acham que têm. Mas não temos. Pense na possibilidade de usar uma saia que mostre as canelas e ir para o trabalho, seja ele qual for, vendedora, gerente, professora, com pernas peludas. Com blusa sem manga e axilas com pelos. As pessoas apontam. Fazem chacota. Tiram fotos e publicam nas redes sociais chamando a mulher de porca. O chefe vem e conversa, exigindo que a mulher raspe ou esconda.

Acha mentira? Então diga se já viu o contrário, isto é, diga que viu uma mulher chegar no trabalho, ou estar na praia, toda depilada, e juntou gente para rir da cara dela e chamar de nojenta por ter pernas ou axilas raspadas/depiladas?

Assim como as pessoas que chegam para mulheres gordas e ficam enchendo o saco para que elas comecem a fazer regime “pela saúde delas”, as pessoas também chegam para muitas mulheres e dizem que raspar os pelos é por uma questão de saúde.

Vou trazer aqui uma informação importante: raspar os pelos toda semana faz um tremendo mal. Traz mal cheiro para as axilas, expõe a pele raspada a infecções.

Temos que falar (também) sobre os pelos das mulheres. Não temos o direito de ser naturais. De engordar naturalmente, criar barriga e pneu. Criar rugas. Usar o nosso próprio cabelo. Manter nossos pelos parece uma bobagem quando temos tanta coisa para batalhar, como a nossa segurança ao sair na rua. Mas pode ser um pequeno sinal de resistência. Temos que começar a nos aceitar por algum lado. Aceitar nossos pelos, nossa menstruação, o leite que vaza dos seios ao amamentar.

Não é de aceitar e se conformar. É aceitar que, pasmem, é normal. Mulheres adultas vão ter pelos no corpo, se for pra ter. Não temos cinco anos de idade. Fêmeas humanas nascem sem pelos compridos e depois eles crescem. Já pararam pra pensar que estamos alimentando a indústria pornográfica com a depilação compulsória? Já há pesquisas que apontam que a palavra “novinha” é uma das mais procuradas em sites de conteúdo erótico.

Se você gosta de se raspar, questione o porque você o faz. Questione a propaganda vendendo a gilete. Questione porque as pessoas acham feio mulheres com pelos nas pernas. Questionar não dói. Se opor a algo antinatural não dói.

Mas a imposição sem o mínimo de respaldo sobre os benefícios de uma prática podem doer na carne e na alma, além do bolso.

Por Andreia Nobre
Imagem destacada: daqui

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