Está solitário ser feminista
Estou ensaiando esse assunto há meses, mas ontem à noite, quando li a reação das pessoas ao texto “Como foi transar como uma vítima de estupro“, me acertou em cheio a convicção de que não, eu não pertenço mais ao rolê feminista. Vejam bem, eu ainda me considero feminista (principalmente por falta de opção) – mas meu senso de comunidade e de parceria com outras feministas está extremamente fragilizado, e meu interesse em dialogar com os grupos e mesmo com pessoas que eu sigo e respeito é quase nulo agora.
Para colocar tudo na mesa, eu sou uma das pessoas que não se incomodou com aquele texto e que acha que relatos desse tipo são bastante necessários. É possível e importante criticá-lo, da forma e da abordagem à relevância dele. Mas o que eu estou vendo é, principalmente, uma enxurrada de projeções em cima do autor, da menina de quem ele fala e de todas as pessoas que passaram a comentar o texto – e isso por si só já faz com que nós estejamos falando de mil coisas diferentes e provavelmente legítimas, menos do texto e daquela situação específica. Só Freud explica a incapacidade do feminismo online de olhar para as coisas que estão na frente dele ao invés da vida das próprias comentaristas e de coisas que muitas sequer viveram, mas com as quais elas fantasiam o tempo inteiro.
O que eu mais vi até o momento foram pessoas linkando textos de ~outras~ vítimas de estupro em uma tentativa de “iluminar” aqueles que não se repugnaram com o relato do cara, ou que desesperadamente buscavam a versão da vítima para amenizar o desconforto que o texto original mobilizara nelas. Pra mim, é evidente que o que de fato se busca com esses movimentos é a presença de uma vítima “ideal”, aquela que corrobora perfeitamente o nosso entendimento do assunto e confirma que estamos, sim, do lado “certo”, lutando pelas coisas “boas” e pelas vítimas “reais” da opressão.
Há uma recusa patente de admitir que – independentemente daquela história ser real ou não – existem vítimas de estupro cuja assimilação da violência extrapola o nosso roteiro convencional, cuja sobrevivência as situa fora do arquétipo da vítima, e cuja narrativa pode, sim, ser acessada pelos nossos “inimigos”. Nós não estamos buscando as vítimas de estupro que o narrador apagou em sua egotrip narcisista.
Estamos buscando pessoas que nos façam esquecer, por um segundo, que nós também apagamos outras sobreviventes – e que a linha que separa os socialmente conscientes dos ignorantes perigosos é mais tênue do que nós podemos tolerar.
Além da dificuldade de apreender que vítimas de estupro não são intercambiáveis (que história é essa de mostrar “o outro lado” com textos que não são da menina citada?), me choca que poucas pessoas percebam o quanto essa recusa de conceber a vítima do texto se relaciona com outros problemas muito antigos e muito sérios dentro do feminismo – todos baseados na necessidade de determinar “a mulher” por quem nós falamos e lutamos. Quem pressupõe que a menina referida no texto se sentiu/sentirá “abalada” e “exposta” com a publicação está, no fundo, pensando em uma vítima que dificilmente teria a mesma atitude da menina descrita pelo cara. Insistir no sexo com um desconhecido ~apesar~ do estupro sofrido é um ato de muita coragem e aposta na própria capacidade de manejar o que foi e será vivido dali em diante. E essas vítimas – as que insistem, as que continuam procurando o que já as ameaçou – não são as que nós costumamos referir em treta de Facebook. Não digo isso para brincar de vítima high profile/vítima low profile, mas para salientar a nossa pouca abertura às vivências que nos são menos familiares. Por que é tão fácil partir do princípio de que o texto é uma fanfic? É porque a situação toda é inverossímil, ou porque é mais fácil pensar que a moça do relato é uma ficção? Até que ponto o nosso estranhamento não diz mais sobre nós mesmos do que sobre o autor do texto e o seu propósito com ele? Minha ideia é de que o que está escrachado aqui é a mesma resistência à Outra que abre espaço para a exclusão de um sem-número de mulheres do próprio feminismo (mulheres trans, mulheres não-heteronormativas, mulheres antifeministas e por aí vai). Juro que tentei e não consigo enxergar muito mais coisas envolvidas aí.
A quem achou que o texto era um “roubo de protagonismo” e uma “lição de moral” às mulheres, eu não sei o que dizer. Uma amiga que admiro muito chegou a desativar o seu Facebook ontem depois de chamar atenção para o quanto nós cobramos um posicionamento dos homens em relação ao estupro e ao machismo, mas não admitimos que este posicionamento seja feito em termos que não os nossos. Mais uma vez, nos ocupamos com fantasias de homens essencialmente maus, de feministos milagrosamente conscientes e seguimos nos distanciando dos seres humanos que estão aí, negociando os aprendizados bárbaros que receberam e falhando, muito e muitas vezes, em fazer diferente. E, inclusive, acertando também – do seu lugar, dentro das suas limitações, com tudo que elas implicam. Não acho que a nossa revolta seja infundada, nem que nossos excessos não tenham razão de ser, mas acho que eles já interferem demais no nosso potencial de mudar qualquer coisa para não serem observados e criticados. Se isso for “falta de empatia” da minha parte, espero equilibrá-la daqui a um tempo. Por enquanto, vejo isso como uma falta de condições de encarar a complexidade da violência e de seus agentes, e por isso mesmo, uma deprimente falta de ferramentas para combatê-la.
Por fim, honestamente, não sei por que estou escrevendo isso. Quem não gostou do relato do cara não deve interpretá-lo como eu gostaria e é inútil querer se fazer compreender quando todas as opiniões já estão formadas. Se está solitário ser feminista no país que está aí, também está solitário ser feminista dentro da bolha que tanto já me ensinou, e que hoje, mais me intimida do que me fortalece.
Por Stefanie Cirne
Imagem destacada: “Fashion Victims“, de Yolanda Domingues
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