Sobre “Eu, Daniel Blake”

Assisti com uma amiga há algumas semanas em Porto Alegre Eu, Daniel Blake – ao final, as poucas pessoas na pequena sala olhavam umas para as outras, desoladas. O clima pesava. O filme provoca imenso desconforto, pois retrata com exatidão aquilo que estamos vivendo mundialmente: o acirramento das políticas de austeridade empurrando cada vez mais e mais pessoas para a fome e miséria. As maravilhas do Estado neoliberal – que te adoece, te tortura, te mata e ainda vai ao teu enterro.

O filme conta as desventuras de Daniel, viúvo de meia idade que, impossibilitado de retornar ao trabalho por recomendação médica, tem o seu benefício cortado e precisa recorrer insistentemente à burrocracia estatal para tentar retomá-lo. Num mundo cada vez mais conectado, Daniel é totalmente leigo em tecnologias – como tantas pessoas à nossa volta o são. (Um parêntese: lembrei que estava devendo um comentário sobre o filme, aliás, ao pegar um táxi essa semana no Rio. Seu João, apesar da ausência de GPS, conseguiu me trazer ao destino solicitado, um lugar bem confuso de chegar. Ao contrário do que se espera, seu João não estava interessado em me dar um golpe: apenas, me confessa, não sabe usar ‘essas tecnologias’. E eu acredito: me mostra seu telefone sem acesso a nada mais do que SMS e telefonemas. Imaginei imediatamente seu João na mesma situação de Daniel, depois de ter trabalhado e pago seus impostos uma vida inteira e sem conseguir o apoio do Estado na hora em que mais precisa.)

O fato é que as coisas assim são: os atendentes, treinados para te fazer desistir do benefício. O Estado, surdo aos teus apelos. Um problema coletivo tornado individual pela força da necessidade – ou de nossos condicionamentos? Não seria, eu sempre me pergunto, o caso de uma revolta coletiva, já que somos tantos? É uma ideia recorrente, que tiro da cabeça ao lembrar, por exemplo, como os servidores públicos vem sendo tratados no Rio de Janeiro e mais recentemente no Rio Grande do Sul, com executivo e legislativo surdos aos apelos do povo, respondendo com bombas que custam caro e repressão policial forte – isso enquanto mantém altos os seus salários e benefícios, mostrando com clareza que o problema não é exatamente financeiro.

Por um rápido instante, chega a nos animar a cena em que Daniel, tendo mais uma vez as suas solicitações não atendidas, sai da repartição e picha as paredes, denunciando o descaso com o qual vem sendo tratado. Recebe apoio popular momentâneo, é preso, e o assunto sufocado. O filme não é um enlatado americano com final feliz. O Governo é surdo, o Governo segue surdo, seu aparato de repressão silenciosamente invizibiliza os protestos.

Mas o que vem sendo pouco tratado nos comentários sobre o filme é a hipocrisia social que nos ronda.

Blake é um cidadão de bem, um cara sério, se revolta com o vizinho que deixa fezes de cachorro em seu quintal, repreende o vizinho contrabandista. Em alguma dessas suas peregrinações, conhece Kate, mãe solteira de duas crianças, para quem também o Governo virou as costas. Kate, após inúmeras tentativas de conseguir trabalhos que se encaixem com sua condição de mãe e o horário de escola dos filhos, acaba sendo pega roubando em um mercado. Levada aos seguranças, na saída recebe um convite bem claro (alguns poucos blogs que abordam o tema dizem que ela não entendeu do que se tratava; eu digo que entendeu bem). Guarda o cartão e, num momento de extrema necessidade, cede e agenda uma entrevista. Em seguida começa a se prostituir.

Daniel, o bom homem, deseja resgatá-la do trabalho que lhe parece imensamente repugnante (e possivelmente para algumas pessoas até o seja), mas Kate é clara: ela agora tem 300 euros e pode comprar comida e roupas para os filhos, garantindo-lhes uma vida com um mínimo de decência. A partir daí, Blake – que jamais rompeu relações com o vizinho contrabandista – rompe com Kate, situação que perdura até que ela o convence a deixá-la ajudar com o advogado para resolver a questão do benefício.

Paremos por aqui, pois a intenção não é exatamente dar spoiler, mas discutir justamente esta questão, que já provoquei algumas vezes em meu perfil de Facebook: num período em que as políticas de austeridade empurram cada vez mais pessoas a trabalhos precários, a prostituição sendo apenas um dentre eles, me pergunto se seguiremos, nós à esquerda, empurrando as mulheres que venham a recorrer ao trabalho sexual em tempos de fome para a clandestinidade e reforçando o estigma sobre elas.

Essa semana, o blog Conversa Afiada me trouxe a resposta. Sob o título “Enfim: Temer cria emprego! De prostituta e travesti!”, Paulo Henrique Amorim, citando artigo de Andre Singer na Folha de São Paulo (“Queima de empregos destrói vidas”), traz dados referentes a desemprego e mercado de trabalho, cita o aumento da procura por trabalho informal na área de trabalho doméstico e reconhece que, em tempos de recessão, muitas pessoas terão na prostituição ou criminalidade a única saída – fazendo questão de vincular aí trabalho sexual e criminalidade.

Aqui, nós precisamos esclarecer duas coisas.

A primeira delas: travesti não é emprego ou profissão, travesti é uma identidade política. A prostituição, verdade, é compulsória para um imenso percentual de travestis e pessoas trans que não conseguem colocação no mercado formal de trabalho. Mas é profundamente revoltante que um blog tão lido e recomendado pela esquerda trabalhe por reforças estigmas, por reforçar transfobia, por reforçar putafobia.

A outra questão é que não foi Temer quem criou a atividade de prostituta. Não. A atividade de profissional do sexo foi incluída na CBO, depois de muita luta da Rede Brasileira de Prostitutas, ainda no primeiro governo Lula, sob o número 5198/05. O autor não apenas agrediu sem a menor necessidade uma classe de trabalhadoras, em sua maioria pobres e de formação escolar precária, como agride suas lutas e conquistas. E o autor não está sozinho nisso: pouco após o golpe, o deputado Flavinho, do PSB de São Paulo, apresentou um projeto solicitando urgência na exclusão da atividade de profissional do sexo da CBO, em consonância com o pl 377/11, de autoria do deputado João Campos (PRB-GO).

Empurrar mais e mais categorias historicamente perseguidas e marginalizadas para a clandestinidade, me desculpem, não é papel da esquerda.

E as agressões não param por aí: PHA apresenta suposta reclamação de comerciante onde sugere violência policial contra trabalhadoras sexuais, relato que reproduzo aqui.

“Isso aqui só faz aumentar. Cada dia tem mais gente. Puta, travesti, michê. Começa cedo. Às nove, dez horas da manha já tem gente aqui na esquina. E só aumenta o movimento. E você pensa que a Polícia reprime? A Polícia é sócia deles. Isso aqui virou a zona deles. Eles é que mandam. E cada um tem um estilete. Não é verdade que onde tem puta não tem bandido. Tem sim. Agora é uma coisa só. Puta, travesti, michê e bandidagem. E eles todos têm um estilete. Outro dia teve um cara, dentro de uma camionete, que não quis pagar o que combinou com o traveco, levou um estilete na cara. E você acha que a Polícia veio? Nem vem. E do jeito que a coisa vai daqui a pouco eles tomam conta do centro todo. Eu fico na minha. Atendo, faço o meu serviço. Se posso dou desconto. Sou da paz. Também não tenho como sair daqui. E sabe quem são os fregueses? Dos três: puta, michê e traveco? Homens casados. A qualquer hora do dia! Se tem quem compra, tem quem vende, não é isso? Sabe o que virou isso aqui? Um putódromo!”

Quer dizer, se eu tinha dúvidas sobre como a esquerda trataria a questão, mesmo sabendo que as políticas de austeridade empurram cada vez mais mulheres a atividades precárias, neste momento as minhas dúvidas estão virando pó.

Mais do que nunca, precisamos nos posicionar e evitar este alinhamento informal de nossas posições com as posições da bancada BBB. Parece que ainda não temos plena consciência disso mas o futuro breve nos cobrará. Empurrar mais e mais categorias historicamente perseguidas e marginalizadas para a clandestinidade, me desculpem, não é papel da esquerda.

O Estado de Bem Estar inglês deixou Daniel Blake e Kate perdidos em sua obsolescência programada pelos neoliberais pós Thatcher. O resultado é o surgimento de Nigel Farage, o avanço da extrema direita xenófoba. O mesmo ocorre na França, assolada pelo medo dos atentados terroristas. Trump e seu autoritarismo tosco foi a lição autoritária que os americanos esquecidos do rust belt (“cinturão da ferrugem”) resolveram aplicar nas elites de Nova York.

Ao esquecer e debochar das prostitutas, ao discriminar as travestis, ao não compreender as demandas e sugerir intervenção policial e políticas higienistas para resolver o momento de desastre econômico e social, a esquerda brasileira, aplastada pelo golpe em um país de tradição autoritária, está abrindo caminho para quê?

Por Monique Prada
Imagem: divulgação

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