Notas sobre o “perigo trans”
Estou começando a ler os artigos do dossiê da revista Periódicus, sobre os campos psi e as identidades trans. Uma das coisas curiosas sobre como a psicanálise historicamente entende as identidades trans tem muito a ver com o que pessoas transfóbicas que se reivindicam feministas radicais postulam: a transexualidade seria um “fenômeno” recente, em decorrência de uma suposta mudança da sociedade contemporânea que estaria “permitindo” que pessoas sejam trans através de alterações corporais. Essa mudança social, contudo, não seria em decorrência de uma luta por liberdade, já que ser trans não seria visto como uma possibilidade existencial legítima, mas tão somente fruto do funcionamento das normas de gênero.
Vejamos bem como esses discursos fazem, na verdade, um “diagnóstico” extremamente equivocado sobre a sociedade contemporânea, a transgeneridade e sua relação com normas de gênero. Primeiro que fazem uma falsa descrição da nossa sociedade, já que para esse perspectiva, a sociedade seria não apenas tolerante com pessoas trans, mas estaria “incentivando” – quase com o sentido de “obrigar” – que pessoas sejam trans.
Vale ressaltar que a tolerância em relação as pessoas trans em nossa sociedade nem ao menos é algo sistemático, imagina então a dizer que a sociedade estaria “incentivando” (aliás, me lembro agora de como este discurso é semelhante com o fundamentalismo religioso ou o tradicionalmente reacionário). Se há algumas pessoas que são respeitadas em algumas circunstâncias (que ótimo, aliás!), esta não é a realidade da maior parte dos espaços sociais.
Vejam bem: os discursos biomédico e psiquiátrico contemporâneo não “incentivam” que pessoas sejam trans. Ao contrário, esses discursos orientam práticas extremamente normativas que julgam justamente, em grande partes das vezes, restituir ao máximo a coerência cisgênera para a vida das pessoas trans. O fato recente de que algumas pessoas trans estejam conseguindo acesso a algumas formas de alteração corporal sendo assistidas pela medicina e reconhecimento jurídico não desvela uma suposta aceitação social às vidas e subjetividades trans.
Primeiro porque o acesso a tais alterações e reconhecimento legais são calcadas, muitas vezes, ainda na cisnormatividade. Segundo que a existência de tais centros de atendimentos não desvela uma nova ordem social em que ser trans se tornou “legal”, “aceitável” ou mesmo uma norma a ser seguida. A norma, infelizmente, continua sendo cis, e o fato de existir algum – ainda que extremamente precário, vale ressaltar – atendimento médico às pessoas trans não desmente em nada este fato. Terceiro: alterações corporais não definem a transexualidade, apesar de serem reivindicações necessárias e legítimas de muitas pessoas trans. Ao contrário, o fato de que a sociedade esteja a caminho (mesmo que extremamente lento e gradual) rumo a inclusão de pessoas trans se deu em virtude da luta e militância organizada e política dos sujeitos trans. Os direitos não foram meramente concedidos em virtude de uma suposta mudança abstrata na sociedade, eles são frutos de luta por reconhecimento e respeito de uma população.
Os direitos não foram meramente concedidos em virtude de uma suposta mudança abstrata na sociedade, eles são frutos de luta por reconhecimento e respeito de uma população.
Tal discurso que denunciaria os “perigos trans” na sociedade é pernicioso porque ele vincula uma falsa relação entre existir mais respeito para pessoas trans e uma sociedade supostamente mais normativa, desagregada ou mesmo delirante.
Quando vemos discursos que colocam que a sociedade estaria aceitando “demais” as pessoas trans, desconfiem criticamente. Porque se trata de uma evidente distorção da realidade que visa sobretudo o ataque à autonomia dos sujeitos trans sob um pretenso discurso crítico. Porque há ainda muitos motivos concretos para dizer que a sociedade é, na verdade, profundamente transfóbica: negação de direitos, estigmatização, exotificação, expulsão familiar, evasão escolar (“bullying” acaba sendo um eufemismo para casos de apedrejamento que ocorrem com travestis em escolas), exclusão no mercado de trabalho e uma longa lista de etcs que demostram como as subjetividades trans não são bem vistas pela hegemonia da sociedade. Não há como dizer de fato, a partir da denúncia de tantas violências, que estamos vivendo numa sociedade tolerante que estaria mesmo “forçando” que pessoas sejam trans.
Quando vemos discursos que colocam que a sociedade estaria aceitando “demais” as pessoas trans, devemos desconfiar criticamente.
O fato de pessoas trans se verem muitas vezes forçadas a fazerem alterações corporais justamente desvela a existência da transfobia e da não aceitação de pessoas trans enquanto trans em nossa sociedade. Vejam só: as alterações que pessoas trans almejam se tornar um requisito para a inserção social demostra justamente como a cisgeneridade é vista como o modelo humano de saúde e normalidade.
Um discurso muito pernicioso colocaria que se trata de uma suposta norma para que pessoas sejam trans. Contudo, a norma que subjaz é justamente para que elas fiquem mais próximas da cisgeneridade. Por isso esse discurso é pernicioso: coloca a cisgeneridade como “neutro” e com isso questiona a agência de sujeitos trans em escolherem se desejam determinadas alterações corporais, por exemplo. O apagamento da categoria de cisgeneridade é prejudicial, neste sentido.
Por isso eu insisto fortemente em dizer que o ônus da transformação social que queremos não deve recair em indivíduos, mas sim na transformação das estruturas sociais. Se queremos que sujeitos não sejam violentados por normas de gênero temos que garantir que de fato a estrutura social não exclua nem violente aqueles que, por ventura, não se enquadrem nas expectativas binárias e cisgêneras. O foco não deve ser, portanto, o questionamento das estratégias que pessoas trans podem usar para estarem, em algum grau, mais incluídas em sociedade. Mude a sociedade para incluir sujeitos, e não discipline os sujeitos desviantes para que eles supostamente sejam inseridos.
Mude a sociedade para incluir sujeitos, e não discipline os sujeitos desviantes para que eles supostamente sejam inseridos.
Obter passabilidade cisgênera não é uma excrescência do sistema de gênero produzido pelas pessoas trans – é a forma com que elas encontraram para poderem habitar uma sociedade profundamente excludente.
O foco de nossa luta está justamente na inclusão de pessoas trans que possam a vir não desejar ou simplesmente não conseguirem se passar como cis. Passar como cis não é decorrência de psicopatologias de indivíduos trans, não é alienação de alguns sujeitos que estariam ora “fetichizando” ora “reforçando estereótipos”. O transfeminismo é a luta para que a passabilidade cis – em sua presença ou não – não seja justificativa para que pessoas trans sejam estigmatizadas em suas escolhas – entendidas enquanto estratégias de resistência na forma como habitam o mundo – tampouco requisito para serem consideradas sujeitos dignos de direitos.
Por Beatriz Pagliarini Bagagli
Imaagem destacada, cortesia da autora
Comments
Comentários