Como uma canção para a Bela e a Fera
Há um tempo eu descobri o CD Pitanga de Mallu Magalhães e ouvia várias das músicas quase todos os dias. Havia quem risse dessa minha preferência, achasse-a ridícula. Mallu Magalhães? Mas algumas das suas letras pareciam falar da minha vida.
Vocês prestaram bastante atenção no que a letra diz? Ela está falando de um relacionamento com um homem, sim. Assim como eu estava. Um relacionamento emocionalmente abusivo com um homem. Assim como eu estava.
Nós começamos muito bem. E tivemos vários momentos felizes. Aliás, como a esmagadora maioria das pessoas opressoras que realizam alguma agressão, ele não é um monstro. Na verdade, não está nem perto de ser um monstro. Tudo o que nós vivemos juntos é muito comum, terrivelmente comum. Espero que ninguém termine esse texto achando que ele é um caso especial e diferente de homem machista, porque ele não é. Eu, pessoalmente, o acho até hoje um cara muito legal, com uma série de problemas e muito machismo para trabalhar.
Como a esmagadora maioria das pessoas opressoras que realizam alguma agressão, ele não é um monstro.
Por que eu, feminista há tanto tempo, tão militante, não saí da relação quando ela começou a ficar abusiva? Essa é a pergunta que fazem para todas as vítimas de abuso em relacionamentos e a minha resposta tem uma série de etapas:
Primeiro, ele foi um dos grandes amores da minha vida. Segundo, ele ficou do meu lado quando eu denunciei outro homem por ter abusado sexualmente de mim. Me defendeu, foi meu herói. Logo, como ele poderia ser meu agressor? Terceiro e o mais importante: eu não fazia a menor ideia de que estava em uma relação abusiva.
Como uma mulher feminista há tanto tempo achava normal estar em um relacionamento feito de idas e vindas, incertezas, em que estávamos envolvidos há um tempo e a maior parte das pessoas do nosso convívio não fazia a menor ideia de que estávamos juntos, em que eu nunca sabia se estávamos juntos, em que eu era ignorada em espaços públicos, em que eu já fui chamada de “burra”, “estúpida” e suas variações ou fui tratada como se fosse assim em nossas discussões, em que meu desejo de receber carinho era tratado como sufocamento e exigências excessivas, em que eu me sentia um fardo apenas tolerado na vida dele, entre outras coisas?
Por que eu, feminista há tanto tempo, tão militante, não saí da relação quando ela começou a ficar abusiva?
Preciso dividir essa resposta em três partes: A primeira é algo que vai incomodar muita gente que eu conheço. Muita gente normalizou o abuso na minha relação estigmatizando meu companheiro como “louco” e, com essa patologização mágica, fazendo com que todas as coisas que ele fazia e me machucavam eram excentricidades dele que não deviam ser problematizadas. Essa era a pessoa com quem eu estava me envolvendo e, se eu não gostava dele assim, eu quem o largasse. Naqueles quase dois anos cheios de cortes e reviravoltas em que estivemos envolvidos, eu conto nos dedos de uma das mãos as pessoas que disseram que era abuso. Ironicamente, a primeira que disse isso foi uma amiga cujo namorado batia nela e ela não conseguia terminar a relação. Outras pessoas normalizavam o abuso normalizando mesmo.
Uma vez estávamos em minha casa com amigos dele e eu estava mexendo no meu computador, tinha sido um dia ótimo, eu estava muito feliz, fiz alguma coisa que ele não gostava em relação ao meu computador (nem lembro mais o que era). Ele me disse para parar. Eu não parei, não era nada demais e o notebook era meu. Ele me mandou parar. Eu não parei. Ele bateu na minha mão. Na frente dos amigos dele. Eu parei, chocada, e exclamei “você me bateu!”. Imediatamente ele pediu desculpas e disse que tinha sido um impulso errado, que nunca mais ia fazer (no entanto, ele fez), e ninguém na sala disse nada, ninguém fez nada. Quando eu contei o que tinha acontecido para uma amiga feminista, militante, ela disse que era complicado mesmo, mas que ele só tinha dado um tapinha na minha mão e que isso também não era exatamente uma agressão física.
No entanto, vamos refrasear a cena: ele deu um tapa na minha mão para que eu obedecesse o comando dele. Importa que não tenha me deixado roxa? Importa que não fosse em um lugar emblemático, como o meu rosto? Não. Não importa. Depois, quando eu me dei conta que ele realmente tinha me batido (mais de uma vez) e que ele ter me batido significava que nosso relacionamento era inegavelmente abusivo que eu comecei a repensar tudo e a considerar o nosso fim, que veio apenas muitos meses depois.
A segunda parte vem com uma palavra em inglês que parece complicada, mas nem é tanto assim. O nome do que o meu companheiro fazia comigo quando nós discutíamos e ele me convencia de que eu era louca, obsessiva, responsável por sufocá-lo a tal ponto que ele precisava passar um mês sem me dar um único telefonema é gaslighting.
Esse é um mecanismo de abuso mais comum do que parece a princípio, com o seu nome complicado e arrogante, que vem de uma peça em que um marido convence a esposa de que ela está louca alterando as lâmpadas a gás da casa deles (a tradução literal de “gaslight” é “iluminação a gás”). Meu companheiro fazia gaslighting comigo da forma como estou descrevendo aqui, mas existem vários métodos de gaslighting.
O central é convencer uma das partes da relação de que ela não consegue ter percepções corretas sobre a realidade, sobre as memórias deles, sobre os sentimentos dela, sobre o certo e o errado e a outra parte é a executora e juíza única disso. Pode-se fazer isso com quem você não tem um relacionamento e nem intimidade. É bem mais comum que se faça isso do alto de uma relação de privilégio, embora não seja obrigatório. Duas pessoas no mesmo patamar de privilégio podem fazer isso uma com a outra, uma pessoa em situação de opressão social em relação a outra pode ser quem faz o gaslighting, embora seja infinitamente menos comum e bem mais difícil. É bem mais fácil um homem convencer todo mundo que aquela mulher que protesta e reclama é “louca”, “histérica” (apenas não usem essa palavra), “exagerada”, “carente”, do que o contrário.
A terceira parte da resposta é bem dura de dizer em voz alta: porque eu achava que esse era o relacionamento que eu merecia. A gente ouve muito no feminismo comunzão assim, de página de Facebook, que as mulheres são ensinadas a serem princesas no alto da torre esperando o príncipe vir resgatá-las e levá-las ao seu final feliz. Algumas mulheres são.
Outras mulheres são ensinadas que nem direito a serem princesas elas têm. E existem algumas que ficam em um meio de caminho, eu diria assim. No meu caso, a princesa com a qual eu mais me identifiquei a vida toda era a Bela, de “A Bela e a Fera”. Eu achava que era tudo bem ser violento comigo às vezes, se ele soubesse ser doce também. E achava que meu amor era capaz de transformar os monstros em príncipes. Achava que era normal chorar até dormir e ter certeza de que o homem que eu amava não só não me amava de volta como apenas me suportava na vida dele na falta de algo melhor. Achava que era normal que ele fosse propositalmente cruel comigo me dizendo coisas que sabia que me deixavam insegura, que ele passasse horas em uma reunião onde eu estava sem nem me olhar e me cumprimentasse na frente de todos os nossos amigos com um beijo no rosto para não interagir mais comigo pelo resto da noite.
Isso tem um componente da minha história pessoal, claro. Tem o componente da história pessoal dele, também. Mas seria muito grotesco ignorar que essa é uma história comum não apenas para mulheres, mas, principalmente, para mulheres que experienciam também opressão de raça, que são gordas, possuem alguma deficiência física, mental, são portadoras de distúrbios psicossociais (como esquizofrenia, autismo, drogadição etc.), são trans e/ou são bissexuais ou pansexuais. As mulheres bissexuais tem muito mais chances de estarem em uma relação amorosa abusiva do que as héteros e tem maior incidência de serem a parte violentada quando estão em uma relação abusiva com uma mulher lésbica.
Nós, bissexuais, aprendemos com a sociedade que não somos confiáveis, dignas de amor e dedicação, que somos sujas e não devemos ser apresentadas para a família. Somos constantemente hipersexualizadas, tratadas como seres que existem para realizar fantasias sexuais alheias e só, descartadas na manhã seguinte do ménage a trois com o casal hétero muito legal de amigos que te convidou para participar depois que todo mundo já estava bêbado, como eu tantas vezes já fui. Somos constantemente castradas emocionalmente. Nos é negado o direito de ter ciúmes porque, afinal, nós temos o mundo como possibilidade, não é mesmo? Nossos e nossas parceires monossexuais é quem, na verdade, são as pessoas constantemente ameaçades em uma relação conosco. Não podemos ter carência, não podemos nos envolver.
E aí eu entro na segunda parte da minha fala. Que a monogamia é socialmente construída para controlar os corpos das mulheres e garantir a estruturação da família do jeito que o capitalismo gosta é fato sabido por toda a esquerda. Todo mundo adora conversar no bar sobre como o ciúme é posse, como o amor tem que ser livre, como poliamor é revolucionário para caraca e outras choveções no molhado.
Agora vamos parar um pouco e pensar. Quem tem o apetite insaciável e precisa ter várias parceirias além de sue companheire fixe, que fica todo dia em casa cuidando das crianças e fazendo o jantar, e quem é que precisa entender e perdoar sempre mesmo? Quem é que tortura, espanca, mata e mutila por ciúme e quem é que chora e se machuca e se esforça mais por ciúme mesmo?
A monogamia, meninos, ela não é só construída para controlar os corpos das mulheres. Ela é para as mulheres.
A monogamia, meninos, ela não é só construída para controlar os corpos das mulheres. Ela é para as mulheres. Vocês não são socialmente ensinados enquanto gênero a serem por definição seres monogâmicos, no máximo, quando são pessoalmente “caras fiéis e respeitadores”, devem ser considerados mais especiais e preciosos do que o Santo Graal. Desculpe desapontar vocês, queridos, mas não tem nada de revolucionário quando vocês têm um relacionamento aberto. Pra começar que vocês não são o sujeito revolucionário quando a gente fala do fim do machismo, então o máximo que dá para vocês fazerem é serem caras que se propõem a não apenas desconstruírem seu machismo 24h pelo resto das suas vidas: vocês precisam ser traidores do seu gênero. Precisam ser o cara sempre chato, que nunca vai compactuar com o machismo dos seus amigos, que vai problematizar tudo, que vai se meter quando vir um cara batendo em uma mina, gritando com uma mina, chegando agressivamente em uma mina etc.
Sobre relacionamentos monogâmicos e relacionamentos abertos (dentro de suas mil variações). Assim como as histórias de princesas, existem mulheres que são “pra casar” e as “putas”, outras, amantes, a sobra. Para uma mulher ensinada a vida toda que ela (especificamente ou o grupo no qual ela se enquadra) não tem direito a um relacionamento afetivo, um lugar na vida de alguém, estar em um relacionamento onde ela é só mais uma das múltiplas parceiras de um homem não é nada mais do que um lugar comum.
O ciúme, nas mulheres, tem uma origem diversa do ciúme dos homens. Os homens são ensinados, sim, a verem suas parceiras como posse e seu ciúme deve ser combatido, podado, problematizado constantemente na desconstrução de seus privilégios. Mas as mulheres — em especial as mulheres que não estão dentro do padrão “para casar” — são ensinadas que sua felicidade reside única e exclusivamente em ter um marido ou um companheiro ao seu lado e ser capaz de satisfazê-lo bem para que ele nunca a abandone. Não há nenhuma imagem mais deprimente em nossa sociedade do que a “velha louca dos gatos” que nunca casou nem teve filhos. Nesse sentido, todas as outras mulheres são nossas concorrentes na busca por manter um homem e nós precisamos constantemente garantir que ele não enjoe de nós, não se canse de nossa presença, de nossa relação. Em uma relação não-monogâmica, a fluidez dos laços e a incerteza da sua posição na vida do seu companheiro fazem com que essa insegurança e essas ansiedades se multipliquem ao infinito.
Não podemos ser caretas, pouco descoladas, e ficar regulando as meninas com quem nosso companheiro fica além da gente. Não podemos considerar traição se ele mente para se livrar de nós em uma festa, dizendo, por exemplo, que está cansado e vai embora cedo porque tem que acordar cedo no dia seguinte, para ficar até as 5h da manhã bebendo e ficando com outras pessoas depois que você vai embora. Se você é bissexual, ainda é capaz de ouvir que você não tem direito a ficar com ciúme porque você fica com mais mulheres do que o seu companheiro ou que você tem mais jeito com as mulheres do que o seu companheiro.
Não estou aqui fazendo uma defesa da monogamia. E nem do ciúme feminino, dizendo que isso tudo tem que ser encarado com normalidade ou incentivado. Estou dizendo que o ciúme feminino precisa ser compreendido em sua origem e desconstruído com reafirmação da posição da mulher na sua vida. Com valorização e carinho, com honestidade, companheirismo e reconhecimento de que as inseguranças dela podem não fazer sentido para você, mas não quer dizer que elas não tenham sentido.
Uma relação não-monogâmica heterossexual em que os dois só podem ficar com mulheres, juntes ou separades, é machismo destilado.
Uma relação não-monogâmica entre um homem hétero e uma mulher bissexual em que os dois só podem ficar com mulheres, juntes ou separades, é machismo destilado em sua pureza somado a uma boa dose de lesbofobia, que considera relações entre mulheres algo menos perigoso à masculinidade, e bifobia, que instrumentaliza e fetichiza a sexualidade de sua companheira, além de castrá-la a seu bel prazer. Uma relação não-monogâmica que é um eterno estado de “ficamos ocasionalmente” e esse ocasionalmente envolve sempre a mediação de drogas ou encontros em espaços que não sejam coletivos também não é nada revolucionária.
Não significa que não possa ser boa e divertida para algumas pessoas. Mas a verdade é que, na maioria dos casos, esse tipo de relação se fundamenta em castração emocional das mulheres envolvidas. Ficamos segurando nossos impulsos de demonstrar afeição e entrar em contato constantemente para não “assustar” os homens, para não parecermos pouco modernas e carentes. Além disso, como a relação não tem regras e não tem nome, não há marcos de cobrança e pedidos. Não há marcos de diálogo e, nesse sentido, o mais provável é que a parte mais insegura da relação termine a reboque da outra, independentemente de suas vontades e necessidades.
Para um relacionamento aberto não ser opressor quanto um relacionamento monogâmico tradicional, é necessário que as partes conversem.
Para um relacionamento aberto não ser mais do mesmo e não ser uma situação extremamente abusiva e opressora, tanto quanto um relacionamento monogâmico tradicional, é necessário que as partes conversem. Verbalizem explicitamente o que sentem e o que pensam. Digam seus limites. “Não, eu não sou capaz de suportar te ver ficando com outra pessoa”, “Quando a gente sai junto, somos a prioridade um do outro”, “eu só topo ménage se for com alguém que a gente tem intimidade”, por exemplo.
A pós-modernidade esgarça as relações das pessoas e faz a gente ter muito medo de regras. Regras não são erradas e más. Elas são só instrumentos, o que fazemos delas é nossa responsabilidade. Falando em responsabilidade, não há nada mais irresponsável do que um relacionamento baseado em achismos e machismos.
Artigo originalmente publicado no medium de Maria Leão, reproduzido aqui com autorização da autora.
Imagem destacada: divulgação
Comments
Comentários