Sobre gaslighting, loucura, histeria, fascismo, mídia e machismo
Na semana em que a presidenta foi enquadrada como louca por uma revista, e uma de suas mais fortes opositoras foi tachada de louca quando o que fez foi um discurso com tons fascistas, se faz necessário colocar certos pingos em certos is.
O que aconteceu nos dois casos foi completamente diferente. A única coisa em comum foi que as duas foram abordadas como loucas.
Dilma Rousseff foi enquadrada como inábil* de forma perversa, e através do truque mais velho da cartilha machista: deslegitimar a saúde mental de uma mulher para então desestabilizar seu poder de fala e de ação. Esse fenômeno é tão antigo que já foi conceitualizado de duas formas: como histeria, e como gaslighting.
(*Para os fins deste argumento, importa pouco ser contra ou a favor do processo de impedimento ao qual Rousseff está sendo submetida, pois a atenção aqui recai sobre práticas misóginas discursivas/midiáticas, e não posicionamentos político-partidários.)
A histeria é uma neurose complexa caracterizada por instabilidade emocional. A suposta condição médica sempre foi atrelada às mulheres, ainda que o diagnóstico fosse dado a partir de observações de inadequação das pacientes a normas sociais de gênero. Na era Vitoriana, quando a histeria foi conceitualizada como doença específica das mulheres, moçoilas dissidentes – que, por exemplo, não queriam casar, ou que demonstrassem afeição por estudos e trabalho – eram frequentemente diagnosticadas como histéricas, depois devidamente medicalizadas, internadas e controladas. O tratamento encontrado para a conjectural doença foi a escuta, o que acabou originando o próprio método clínico da psicanálise.
Alguns pontos se sobressaem a partir deste breve resumo histórico: (a) normas sociais opressoras (de gênero ou outras) podem produzir subjetividades aflitas; (b) a sociedade patriarcal tem o hábito de tratar como problema médico (incluindo saúde mental) as dissidências apresentadas pelas mulheres, e (c) a escuta sempre abre possibilidades de novos entendimentos.
Ao longo dos anos, ao significado e usos originais da palavra, foram sendo adicionados outros, e hoje o conceito de histeria também é caracterizado por comportamentos de emotividade excessiva, seja por parte de mulheres, homens ou da sociedade em geral – vide o uso da expressão “histeria coletiva” para designar uma comoção pública tida como exagerada.
De todas as formas, o conceito ainda é utilizado por muitos no afã de silenciar uma mulher que apresenta dissidência. Nós feministas o sabemos: muito frequentemente (mas muito frequentemente) somos consideradas histéricas. Antes de sermos ouvidas. E se o diagnóstico é questionável, o procedimento analítico é absolutamente falho: escutar, não escutam.
Já o gaslighting é uma forma de abuso psicológico, no qual informações são distorcidas, omitidas, ou meramente fabricadas, com a intenção de fazer uma pessoa duvidar de sua própria sanidade mental, memória ou percepção da realidade. O termo tem origem no filme Gaslight, de 1944 e estrelado por Ingrid Bergman, cuja personagem é levada a acreditar que está perdendo a sanidade pelo marido, que deliberadamente a confunde ao interferir com as lamparinas a gás da casa onde moram.
O que aconteceu com a presidenta foi gaslighting, orquestrado pela imprensa numa tentativa de deslegitimar sua competência ao colocar em dúvida sua saúde mental, reforçando assim a velha e manjada narrativa da mulher histérica e incapacitada.
Alguns dias depois, Janaína Paschoal, a jurista e doutora em direito penal pela USP que protocolou um pedido de impeachment contra a presidente, discursou fervorosamente em favor do mesmo, num encontro público com seus pares. O discurso causou furor nas redes sociais, e tão logo virou meme, atraiu uma série de comentaristas prontos para tachá-la de… louca.
A loucura é um distúrbio, uma alteração mental caracterizada pelo afastamento de uma pessoa de seus modos habituais de pensar, sentir e agir. É também um sentimento, ou uma sensação, que foge ao controle da razão.
O discurso de Janaína não era louco – e duvido muito que ela o seja. O que o discurso dela carregava eram tons de fascismo.
O fascismo é comumente caracterizado por um regime que faz prevalecer conceitos (como nação, ou raça) em detrimento de valores individuais, e ele geralmente se apresenta sob a forma de governos autocráticos, centralizados na figura de um ditador. Mas não é só isso: o fascismo também pode ser uma tendência para ou o exercício de controle autoritário, por parte de cidadãos comuns.
De acordo com Márcia Tiburi, autora de “Como Conversar com um Fascista”, o fascismo pode ser entendido como a impossibilidade do diálogo, que se dá via silenciamento, truculência, nenhuma abertura para a outra, seja para produzir conhecimento ou ações democráticas.
(Assista aqui o vídeo postado pelas Jornalistas Livres, em que a filósofa Marcia Tiburi explica que o ~escândalo em torno do discurso performático de Janaína Paschoal foi provocado pela tradição de tachar mulheres de loucas, e que o problema do discurso é o fascismo intrínseco a ele.)
Ações assim precisam ser vistas e entendidas com critério. Construções retóricas de uma inimiga abjeta a ser aniquilada são perigosíssimas. E se é problemático qualificar alguém como “fascista” (e é mesmo, problemático, perigoso, e… ironicamente fascista), é preciso estar atenta à semente do fascismo presente em discursos inflados, pois são eles os veículos de propagação da ideia de uma inimiga abjeta a ser aniquilada, o que fomenta animosidade e bastante violência.
O machismo, como conceito filosófico e social, supervaloriza atributos físicos e culturais associados a homens em detrimento dos associados às mulheres, pela crença numa suposta superioridade masculina.
A mídia apresentou sua faceta machista ao engendrar uma pseudo-análise política pautada apenas e tão somente no suposto péssimo estado emocional da presidente. Paschoal foi (sem querer ou deliberadamente, jamais saberei), porta-voz da faceta mais fascista de um Brasil embebido em ódio a/político.
Nenhuma das duas apresenta, na realidade, comportamentos que as identificariam como loucas.
Toda mulher que ousou dissentir já foi, ao menos uma vez, pintada como louca. E como bem disseram as manas do Think Olga em uma postagem relacionada, “conhecemos na pele o peso que tem essa tinta”. Por isso não aceitamos que descrevam nenhuma das duas como tal.
Por Joanna Burigo
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