Com Lemonade, Beyonce faz do limão um coquetel molotov
As divas sempre entenderam o universo pop como cenário para a promoção de discursos de liberdade. Madonna, uma das minhas favoritas, sempre nos forneceu linguagens de feminilidades empoderadas, e nos últimos anos Beyoncé, outra favorita, vem criando material cada vez mais politicamente relevante.
Em dezembro de 2013 Bey lançou seu primeiro álbum visual (BEYONCÉ) de surpresa, e atiçou um rush global de adrenalina feminista com o teor de todas as canções e vídeos. Em Pretty Hurts ela denuncia o óbvio: os padrões de beleza impostos às mulheres podem causar muita dor. Com Blow ela encoraja uma geração de homens a se divertirem fazendo sexo oral em suas parceiras. Mas foi Flawless a que mais que arrepiou: na canção e vídeo mais aguerridos do álbum, Bey serviu realeza feminista e sampleou trechos de uma palestra de Chimamanda Ngozi Adichie, que incluía a excelente síntese “Feminista: uma pessoa que acredita na igualdade social, política e econômica entre os sexos”. Mine era um desabafo sobre relacionamentos entre mulheres e homens, purpurinado com infinitas referências artísticas: da coreografia de Pina Bausch a uma encenação do quadro “Os Amantes”, de René Magritte, o relacionamento entre ela e seu marido, Jay-Z, parece ter servido de inspiração para a canção.
Andam dizendo o mesmo de seu álbum mais recente, mas analisar tanto Mine quanto Lemonade a partir da lógica das revistas de fofoca – que colocam os relacionamentos pessoais de celebridades acima do seu trabalho – representaria não apenas um desrespeito à inteligência com que Beyoncé produz, mas também um desserviço ao propósito de sua obra.
Com Lemonade, lançado no sábado 23/04/2016, ela reafirma sua posição como a voz mais importante do cenário cultural atual.
Num mundo feito por, e para homens brancos, poucas coisas são tão subversivas quanto o fato de a figura pública mais influente da atualidade ser uma mulher negra. E Beyoncé sabe disso, tanto que em Formation, lançado no começo deste ano, ela declara: “You know you that bitch when you cause all that conversation” (algo como: “você sabe que incomoda porque causa tanta conversa”), em alusão óbvia ao ultraje que seu trabalho causa em certos setores conservadores e brancos da sociedade e aos aplausos que o resto do mundo lhe confere.
Beyoncé também sabe que transcende, e muito, sua vida pessoal. Ela sabe que celebridades, e tudo sobre suas vidas, são importantes iconografias da sociedade do espetáculo. Especialmente as que vêm do mundo pop, que viraliza globalmente*. Beyoncé sabe que a obra de uma celebridade pode ser carregada de ideais, e também sabe que ela é a celebridade mais célebre da do planeta.
E ela sabe disso tudo há tempo; a famosa “bow down, bitches” (algo como “curvem-se, vadias”) é de 2012, e desde antes de ter lançado o single cujo refrão é esse, ela e tantas outras mulheres negras do pop – como Nicki Minaj, Azaelia Banks e Rihanna – vêm ressignificando a palavra “bitch”, deslocando-a na direção de homens brancos. Em Bitch Better Have my Money, de RiRi, e a já citada Flawless, isso fica bastante evidente.
Em Formation, e todo seu contexto de divulgação e recepção, ficou aparente que quanto mais marcadamente negra Beyoncé fica, mais ela incomoda, mais a criticam, e sempre com sofismas. Por outro lado, mais ela ganha admiradores. A mulher é um fenômeno.
Com Lemonade ela continua a tradição de empoderar mulheres e denunciar racismo, e aumenta a potência política enquanto mantém coerência, especialmente com esta sua fase: experimentação, sonzeiras mil, imagens alucinantes, coreôs fabulosas, letras e interpretações afiadas, e figurinos, cabelos e maquiagem impecáveis. É emocionante a ilustração crua da beleza, vulnerabilidade e capacidade incansável das mulheres, especialmente das mulheres negras, de transformar a dor em energia que se espalha para os outros.
Tomei algumas notas à medida que o especial de pouco mais de uma hora durou. Mas, como em 2013, está na cara que Bey lançou um daqueles álbuns que gerará muito debate. Falaremos de Lemonade por anos a fio.
Isso, migs, é o que chamamos de #DivaFeminism. Que mulher. Que mulheres, as divas do pop.
Por Joanna Burigo
* e movimenta milhões. surpresa: Beyonce é capitalista. Outra importante conversa, tanto quanto outras críticas com as quais gosto de dialogar, como seus usos da feminilidade enfatizada ao longo dos anos. Para outra coluna.
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