Lemonade: notas sobre o álbum próprio (com gifs!)

Beyoncé lançou na noite deste sábado (23/04/2016) o álbum visual, “Lemonade“, seu sexto disco de estúdio, com um especial de TV para a rede norte-americana HBO. Com ele, a diva reafirmou sua posição como a voz mais importante do cenário cultural da nossa era.

No site feminista estadunidense Jezebel, algumas autoras tuitaram durante a transmissão do álbum. Elas definiram a experiência como trollagem poética, concluíram que Beyoncé é uma visionária, e a agradeceram por fazer arte popular política e poderosa. Concordamos.

O nome do álbum vem de um vídeo de uma festa de família, o aniversário de 90 anos da avó de Jay-Z, Hattie White, que no discurso reproduzido para nós no álbum, diz: “a vida me deu limões, mas eu fiz limonada”.

Ao longo de todo o filme, Beyoncé homenageia as mulheres de sua vida e honra o que aprendeu com elas. Sua arte transcende seu relacionamento com Jay-Z, assim como não se limita a outras personagens que ela interpreta. A vida dela é dela, não a conhecemos. Mas ela pode representar – e representa – mu lhe res.

Lemonade, como BEYONCÉ de 2013, foi hit imediato por explorar artisticamente (e como entretenimento pop, e com aquele talento) temas relacionados a experiências pelas quais a maioria de nós passa.

Beyoncé, na tradição das divas – e arrasando enquanto nela – produz expressões de opressão, especialmente de mulheres negras, e propõe formas de pensar na revolução. Tudo isso como artista pop, no campo onde se destaca pelo talento e faro comercial, e desde antes de sua fase abertamente politizada.

Vamos às evidências?

Já nas primeiras cenas ela aparece sem (ou parecendo sem) maquiagem, de turbante, e no meio de uma plantação – o que é bem significativo, dado, bom, a escravidão. Logo, um título (“Intuition”, intuição) aparece na tela. Aqui ela reflete soturnamente que mulheres desconhecidas caminham pelos corredores à noite, e nos pergunta: aonde você vai quando fica quieta?

Na sequência vem um clipe animadíssimo, daqueles que a cantora caminha/desfila pelas ruas da cidade, de vestidão, cabelos ao vento, saltos altos… e taco de beisebol em riste, destruindo propriedade com um sorriso no rosto, e declarando: “cê não é casado com qualquer uma não, garoto”.

O que isso significa para ela? Talvez nunca saibamos. Mas para nós pode significar várias coisas, desde a melodia pronta para uma frase que, casadas ou não, em algum momento todas nós dissemos pra um boy, quanto para a ideia de que a destruição – que, por ser no clipe, é tecnicamente simbólica** – é da imagem de mina legal que vai aturar seu machismo. E aturar machismo todas nós já tivemos que aturar, feministas ou não.

Mais um título: “Denial”, negação. Começa com Beyoncé pulando de um prédio, mas o asfalto se transmogrifica em água, onde ela fica afogada por um tempo, dizendo que já quis ser mais suave, mais bonita, menos acordada, até declarar que criou casca grossa nos pés. Logo depois ela ressurge, soberana, abrindo enormes portas de onde corre toda a água. Desafogada e fabulosa, ela segue no seu projeto empoderador.

Logo vem “Anger”, raiva, e é significativa a coreografia e o figurino, que combinados dão um efeito de mulheres dançando juntas mas de mãos atadas. Corta para uma série de stills de mulheres negras não famosas, com Beyoncé declamando que mulheres negras são as pessoas mais vulneráveis, ressoando um ponto há muito feito pelo feminismo interseccional de Kimberlé Crenshaw e bell hooks, e bem representado no Brasil.

Logo depois disso ela aparece, glamurosa, pura atitude, de casaco de pele, com uma gangue em uma garagem e, em tom de revolta, pergunta repetidas vezes, “Who the fuck do you think I am?” (algo como “quem você acha que eu sou, porra”). Durante todo esse trecho ela segue se apresentando, e revelando o pânico que a voz que ela representa causa: “I´m too much for you”, eu sou demais para você, “Try not to hurt yourself”, tente não se machucar, “I am the dragon, breathe the fire”, eu sou o dragão, respire o fogo.

Destemida, Beyoncé representa quem lida com uma série de preconceitos diariamente, e se representa como quem não tem medo nem vai se calar diante deles.

Sua aura poderosa faz com que muitos de seus fãs usem sua iconografia de forma quase religiosa, e a isso ela responde, rapidamente, mas por escrito em tela cheia: “Deus é Deus, e eu não sou”, e logo volta a conversar com o quem tenta coagi-la, terminando o vídeo com um recadinho: “Este é seu último aviso. Você tenta isso de novo e perde a esposa”.

Silêncio. Ela não diz como a esposa será perdida. “Who the fuck do you think I am?” Pense bem.

Na sequência, “Apathy”, apatia, onde a fantástica coreografia que se dá no coletivo é acompanhada da letra que fez meio mundo especular se o álbum era sobre ela e o maridón. Insisto, Yoncé transcende a dinâmica Bey and Jay-Z, e o álbum é simbólico dos relacionamentos entre mulheres e homens, e não apenas os românticos.

Ela faz reflexões sobre o futuro, perguntando se quando ela morrer o parceiro hipotético vai pensar “descanse em paz, amor verdadeiro que eu pensava ser incondicional”. A melô do fantasma da Bey segue dizendo que gostaria de saber o que é um amor sem traição, e fala que histórias de amor parece sempre ter um elemento em comum: garotas tristes. Mas logo ela sacode a melancolia e volta com pílulas de empoderamento, dizendo que os dedos do meio permanecerão levantados para quem a engana, em quem ela não pensa muito. Ela está ocupada com ela mesma. E tudo isso acontece na companhia de uma Serena Williams, que faz aparição de maiô e totalmente #werking it. Deusas.

É de perder o fôlego, e nesse ponto lembremos que Beyoncé, desde seu último álbum, esteve em turnê e lançou singles, vídeos e outros projetos visuais. Que mulher.

Olho na tela, e o título da vez (nem sei se peguei todos) é “Emptiness”, vazio. Mas o clipe é cheíssimo de significado. Há muito vermelho, desde o corredor de onde ela fala bastante sobre sangue (e sobre sangue atrair homens, que ela diz serem lobos…) até o vestido com que dança sentada como uma entidade no meio de um quadrado de fogo.

Não surpreendentemente, Bey se declara cansada, embora comprometida com seu trabalho – “She would rather give it up but she professional”. E então, mais uma vez, ela mostra que o lugar de onde tira forças são as mulheres de sua vida, relatando algumas histórias sobre elas, e finalizando esta parte com um comentário sobre uma: “mulheres como ela não podem ser contidas”.

Feminismo poético.

Em seguida – e ao som de alguma espécie de country music, o sertanejo Americano de onde vêm outras divas, como Dolly Parton – Bey faz mais uma dura reflexão quanto às relações entre mulheres e homens, questionando francamente as manas sobre relacionamentos abusivos: “Você se sente uma escrava da cabeça dele?”, ou “Ele distorcia a sua imagem?”. Sem deixar barato, finaliza: “Este homem é seu marido ou seu pai?”.

Silêncio.

Na sequência ela oferece “Reformation”, reforma. O clipe começa num estádio de futebol Americano, onde ela aparece deitada e Jay-Z e sua filha brincam. Aqui ela pergunta (ao marido? ou aos homens? quem saberia…) por que tanto medo do amor, por não se achar merecedor?

Na metade deste trecho, há uma pausa que vem acompanhada de batuque e um close-up giratório em seu rosto. Eu sempre a achei muito parecida com Frida Kahlo, e gostaria de imaginar que essa semelhança tenha sido usada aqui propositalmente: como Kahlo, o grande tema da obra de Beyoncé é ela mesma, e ambas têm em sua arte e estética ferramentas de ativismo político. Mas isso rende uma outra coluna.

Logo mais, “Forgiveness”, perdão, onde ela declara que reconciliação talvez seja possível enquanto, na tela, vemos um vaso restaurado com kintsugi, a arte japonesa do reparo com ouro, que torna o objeto quebrado ainda mais valioso. Uma relação quebrada reparada com beleza: seria este o feminismo a que Beyoncé se propõe?

A resposta pode estar, mais uma vez, nas mulheres de sua vida. Em trechos de falas de outras mulheres, ouvimos uma respondendo à pergunta “mas como liderar as pessoas?” com muita simplicidade: “amor”, ela declara.

Uma das pautas feministas mais batidas é a divisão de tarefas, e uma que recai sob mãos femininas tende a ser o cuidado para com os outros. E, feminista ou não, pode-se observar que é verdade que cuidores são, em sua maioria, mulheres, bem como que cuidado é um trabalho de emoções. Emoções como o amor. O amor vem cabendo às mulheres, que têm sido, historicamente, grandes tutoras e distribuidoras dele. Beyoncé parece propor que o amor é conhecimento forte entre as mulheres, e a maior lição que com elas aprendeu.

Daí vem “Hope”, esperança, e o que vemos é uma linda ode visual às mulheres, à sororidade, na qual Bey canta sobre mulheres e suas filhas para uma plateia de mulheres negras, e conversa com elas em num jantar para mulheres negras. Na sequência, “Redemption”, redenção, onde aparece o vídeo do discurso da limonada de vó Hattie, e onde Bey declara ter feito de seu tormento sua dor.

E assim ela o fez. Em BEYONCÉ ela falou de desejo, padrões, paixões e feminismo, e desde então ela também vem falando mais e mais sobre liberdade e racismo. Sempre cantando e dançando a cultura de mulheres negras de onde ela veio, pois o pessoal é político, e política também é estética. Lemonade é só mais uma das muitas provas de que Beyoncé tem muito, mas muito mais do que hot sauce in her bag, swag.

Por Joanna Burigo

*não confundir com violência simbólica

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Ana Clara Delajustine

Uma psicóloga feminista em luta por mais afeto. Implica com a linguagem sexista e acaba com a graça em piadas machistas. Vive de amores. É uma multidão e explosão de sentimentos. Inquieta, teimosa e bruxa, tem fé nos encontros do mundo.

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Artista, artesã, designer – é o que costumo colocar nos cartões de visita. Ler e acumular livros de variados assuntos são tradições familiares. Já sonhei ser arqueóloga, pensei em cursar História, Filosofia, Sociologia ou Arquitetura, mas acabei escolhendo Artes, onde posso misturar tudo isso. Gosto de viajar pelo mundo, mas sempre volto para casa. Sou curiosa por natureza e tímida que fala pelos cotovelos se tomar muito café ou vinho. Mãe por opção e determinação. Para uns, sou muito certinha e para outros, muito doida. Na verdade, sou um pouco de cada.”

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Camila França

Camila França
Formada em Moda pela Udesc (2005) e pósgraduada pelo SENAC (2009) em Florianópolis, trabalhou por oito anos na indústria da moda como estilista. Em 2013, partiu em busca de qualidade de vida e atualmente dedica quase todo seu tempo ao desenho. Frequenta aulas de Artes Visuais a fim de conhecer e desenvolver sua própria poética. Seus desenhos exploram o universo feminino com técnica mista, grafite, nanquim, aquarela, marcadores e tinta acrílica.

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Jornalismo é a formação, produção de moda é o ganha-pão, escrita é a paixão. Radicada em Londres há mais de uma década, estudou no London College of Communication e depois foi trabalhar com um bocado de gente grande, de Adidas à Ivete Sangalo, da TPM à Vice, e gostaria de largar tudo e só escrever. Além de feminista, é progressista, ateísta, e uma porção de *istas* que causam desconforto por onde passa. Mãe de uma garotinha de 4 anos, com quem divide uma paixão por filmes japoneses e contos de fadas subversivos.

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Thainá Battesini Teixeira, é gaúcha e tem 23 anos. Está no último ano de graduação em História pela Universidade de Passo Fundo – UPF e é bolsista de iniciação cientifica – CNPq pesquisando as Fontes Visuais Impressas: Possibilidades de Pesquisa: Os papéis sociais atribuídos ao gênero feminino na Revista KodaK. Milita pelo Coletivo Feminista Maria, vem com as outras! e participa da organização da Marcha das Vadias de Passo Fundo no Rio Grande do Sul.

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Formada em jornalismo, é  goiana, vira-lata, caçula de sete e doidinha de amores pela vida.
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Em 22 anos de Porto Alegre (RS), cursou Comunicação Social sem ter certeza do que estava fazendo – e formou-se jornalista sem destino definido. Felizmente, está se realizando na esquina entre o feminismo e a informação. Escreve para (sobre)viver, aventura-se no audiovisual e é fascinada por todo tipo de linguagem. Aparece regularmente por aqui.

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Murilo Mattei

Estou me graduando em ciências sociais pela UFSC, interessado em tudo que possibilita questionar a condição humana e os infinitos problemas derivados do pensar abstrato; consumidor assiduo do incomum, non-sense, trash-cômico e da musica contemporanêa, crio musicas como “vinolimbo”.

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Arquiteto e designer por formação, [des]construtor de espaços por ideologia.
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An explorer, Belle is about to set sail on a voyage of discovery that will be  her toughest expedition yet.  Look out for her dispatches from the frontier as Belle Kurves embarks on a quest to find the “new truth” foreshadowed by Hester Prynne – the key to establishing “the whole relation between man and woman [indeed all genders] on a surer ground of mutual happiness.
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Advogada especialista em direito público e de família, vegetariana e meia maratonista. Não convida se não tiver vinho. Chora toda vez que vê uma ovelha.

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Beatriz Demboski Burigo

Estou no caminho pra uma graduação em Ciências Sociais, na UFSC em Florianópolis. Gosto muito do ativismo dos movimentos sociais, mas a minha praia mesmo é o backstage e o olhar sociológico sobre tudo. Sou de humanas, mas nem tanto! Amo antropologia, assim como amo falar sobre cultura pop, gênero e feminismo. No momento, pesquiso oficialmente sobre sociologia da educação, que é mais uma de minhas áreas de interesse.

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Ana Paula Ferraz

Uma figura que vai variando entre a curiosidade sobre pessoas e lugares e o interesse por culturas e olhares. Psicóloga, metida com psicanálise, política e sociedade. Poeta de boteco, cervejeira de calçada, cantora de chuveiro. Enfim, mais um mistério do planeta.

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A meliante Ana Emília Cardoso é uma jornalista curitibana, com passagem por Florianópolis onde esteve detenta em mestrado de Sociologia Política. Por questões de segurança foi transferida para Porto Alegre e está em liberdade condicional. Trabalha com moda e pesquisas, tem 2 filhas, um marido famoso e acredita que pode mudar o mundo empoderando as mulheres.
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Vestibulanda de letras. Desengonçada com a vida e jeitosa com as palavras. Possui diversos pseudônimos, intencionada a desnudar-se de aparência e travestir sua alma com novas visões de mundo. Queria ser Maria. Descobriu-se feminista há não muito tempo, e tem muito que aprender.

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Fê Cacenote, fotógrafa amadora (por amor) e profissional (por profissão) no projeto FEMMA Registros Fotográficos. Viajante espacial do mundo das ideias, colaboradora na Casa da Mãe Joanna, Casa de Cultura Vaca Profana, Coletivo Feminista Maria, vem com as outras!.  Vegetariana, amante das coisas que a natureza nos dá e feminista em eterna (des)construção e aprendizado.
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Comunicação social, educação e feminismo – não necessariamente nessa ordem. Já trabalhei em agências, produtoras, departamentos de marketing, escolas, projetos sociais e até no Coliseu (esse mesmo). Tudo isso, em diferentes graus, em Porto Alegre, Florianópolis, Madri, Roma, Dublin e Londres, onde fiz um mestrado em Gênero, Mídia e Cultura pela LSE. Mas eu saí de Criciúma, SC.

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Maitê Weschenfelder

Acadêmica de Jornalismo e amante da fotografia, passeia entre o lírico do cotidiano e o drama de vidas reais. Uma jovem, louca, livre e solta. Sonha com igualdade e justiça social.

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Formada em jornalismo e apaixonada por pixels, trabalha com projetos de mídia. Faz do feminismo seu impulso diário.

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