Consentimento: uma linha tênue, uma curva perigosa
Não é por força do acaso que, nos últimos dias, muitas verdades foram ditas acerca de uma “cultura de estupro”.
Com efeito, uma adolescente ser estuprada por 33 homens, quem sabe 36, foi um grito de alerta: quase toda mulher sente, ou já sentiu medo de estupro. É uma ameaça cada vez que caminhamos num beco escuro, sobretudo se estivermos com uma roupa ousada, e sob a influência do álcool.
Mas que indiscrição a minha! Já pensou se um estuprador aparecer do nada e me atacar? Há muito que se descobriu que essa figura monstruosa e sem escrúpulos do estuprador pode viver sob o mesmo teto: o pai, o padrasto, o irmão.
“O lar não é mais um lugar seguro!”- Dizia a filósofa Rosi Braidotti em uma aula que assisti na Universidade de Utrecht, na Holanda- “Rápido! Tirem as mulheres e crianças de seus lares!”
Não há lugar seguro para mulheres e crianças. A cultura do estupro impõe essa sensação de insegurança latente: a ideia de que a qualquer momento, alguém de quem você mal desconfia, pode te violar, mesmo em plena luz do dia. O silêncio absoluto imposto sobre o assédio e a violência de mulheres faz com que ninguém se atreva a dar ouvidos aos gritos, a colocar em palavras a dor que isso provoca. Ninguém sabe, ninguém viu. É inútil a denúncia, pois logo tratarão de colocar a vítima em discrédito: ela é mentirosa até que se prove o contrário. Os fantasmas do passado da vítima ressurgem das cinzas: seus antepassados penais, suas aventuras sexuais, sua intimidade, seus maus hábitos de ontem, de hoje, de um dia hipotético.
Tudo vem à tona, exceto a violência ocorrida. Silêncio.
Cultura de estupro é o que naturaliza isso sobre o qual não se fala. São as pequenas atitudes que arrancam o desejo das mulheres, sua condição de agente, de dizer sim e de dizer não.
Pois bem, aqui entra em jogo uma palavra que tem ainda maior relevância sobre o fato ocorrido do que a ideia de uma cultura de estupro: o ato de consentir.
Mas o que vem a ser consentimento? Precisamos falar disso. Será que quem cala consente? Quantos copos de whisky bastam para uma mulher não seja mais capaz de consentir? Quão curta precisa ser uma saia para que este pedacinho de pano expresse, por si próprio, um sim? Será que a uma puta, uma vadia, uma mulher da vida, seja permitido o ato de recusar? E a esposa, será que ela pode ficar com dor de cabeça de vez em quando, e não estar afim? E o homem, será que ele pode negar fogo? Mas fogo não é coisa de puta?
O Patriarcado educa os meninos a serem viris. São estupradores em potencial, pois o que importa é o seu desejo: macho, varão, desbravador. Mas e se seu desejo for diferente desse modelo? E se ele desejar outros homens? E se, ainda que deseje mulheres, ele for um cara sensível, que não corresponda às expectativas do garanhão? Não são todos estupradores, talvez nem mesmo em potencial, pois o desejo pode não seguir à risca aquilo que é esperado desse homem. Porque sua lágrima contida, reprimida, pode chorar baixinho, num silêncio igualmente desconfortável. Nem todo homem!
É triste viver em um mundo em que você não manda sequer em seus próprios desejos.
Há quem diga o que comprar, o que vestir, que horas andar, por onde andar, quem amar, como amar, quem é desejável, quem pode desejar e quem deve se deixar desejar, negando o próprio prazer. O machismo e a heteronormatividade são compulsórios, e definem padrões de feminilidade e de masculinidade também.
O Patriarcado não oprime só a mulher, mas também o homem. O menino que não for bom de bola, o menino efeminado, o menino que não quis transar com a mulher gostosa, o menino inseguro, que usava um par de óculos de fundo de garrafa e sentava no canto da sala, torcendo para que ninguém reparasse nele. O bullying pode ser muito violento entre os meninos!
Consentimento: como é bom ter a oportunidade de dizer sim! De entrar em contato, de flertar, de brincar com a sedução sem sentir medo. Há uma linha tênue que diferencia o jogo, a surpresa, e o inesperado do assédio, do invasivo, do inoportuno, da violência. Temos que nos atentar para o que significa consentir. Pois não há nada mais gostoso do que a reciprocidade, ser desejado por quem se deseja, estar em sintonia com aquilo que pulsa e faz pulsar.
Por Marina Sedova, texto originalmente publicado no blog da autora.
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