Manual da boa feminista

Existe algum “Manual da Boa Feminista”? Não, nem deveria. Neste texto, Bruna Paludo oferece argumentos que nos convidam a fazer reflexões bastante importantes.  

Estamos em 2016 e o cenário político é conturbado. Na política nacional ficou evidente o papel do patriarcado na manutenção da estrutura social que oprime minorias. É um excelente momento para o crescimento do movimento feminista, estamos vivendo uma crise e certas demandas já não podem mais ser ignoradas. Está saltando aos olhos, está por toda a parte. Esse é o momento de dialogar com a sociedade e exibir as amarras que nos restringem.

Como aconteceu com outras feministas antes de nós, a discussão pública sobre o feminismo por vezes foca-se no comportamento das ativistas em detrimento do que de fato precisa ser pensado: vivemos em uma sociedade patriarcal desumana.

Neste contexto, surgem diversas críticas às feministas interseccionais. A principal crítica se concentra na forma pela qual algumas feministas decidem fazer seu ativismo. Acusadas de serem violentas e afastar pessoas do movimento, as feministas acabam levando a culpa pela maioria que se recusa em ver a mulher como ser humano que tem o direito inerente de ser livre e determinar seu próprio destino.

Algumas pessoas têm uma verdadeira implicância com as chamadas feministas pós-modernas, e eu preciso admitir que essa parte me parece confusa. Primeiro que o próprio conceito de pós-modernidade é controverso, considerando que há quem diga que jamais fomos modernos (créditos ao livro do Bruno Latour pela editora 34). Então, falando por cima, talvez estas pessoas associem o chamado pós-modernismo a uma ruptura com o positivismo, com as verdades fechadas, com os modelos certos, com as classificações compartimentadas.

Se isto é de fato o pós-modernismo, ou o desenvolvimento da própria ideia de modernidade, deixo para outras pessoas mais experientes e estudiosas explicarem. Coloquem o nome que quiserem, o fato é que o feminismo interseccional só vai se espalhar mais e mais. Vários grupos se organizam de formas diferentes, a depender do contexto histórico e social em que estão inseridos. Não existe o jeito certo para se falar sobre feminismo, ou sobre qualquer outro movimento social. Se o pós-modernismo é trabalhar com uma pluralidade de histórias, então este é o nosso lugar.

Não existe um jeito certo para se falar sobre feminismo, ou sobre qualquer outro movimento social.

Mas atenção: isso não quer dizer que somos obrigadas a aceitar qualquer discurso como certo e não questionar. Isso significa que antes de ~cagar regra~ precisamos pensar que outras pessoas sofrem opressões diferentes das nossas. Precisamos pensar no contexto, nas pessoas envolvidas, no porquê dos porquês. Certamente é uma tarefa bem difícil que exige sobretudo empatia.

Dentro do feminismo interseccional há um forte estímulo para problematizar, a dúvida é combustível e a nossa certeza se concentra na demanda por respeito e dignidade. Basta entrar num grupo feminista para constatar que a discussão não tem hora para acabar. De fato, é difícil viver num mundo sem manual de instruções, em que tudo pode mudar rapidamente. Mas será que um feminismo estático, dogmático, fixo consegue obter algum resultado num mundo tão mutável?

Estamos todas enfrentando uma situação nova – muito embora o patriarcado seja milenar, a luta por respeito precisa se renovar a cada geração – e estamos nos defendendo da melhor forma possível. Ou existe alguma bíblia sagrada das bruxas subversivas que eu ainda não tive acesso? E se existe, quem escreveu? Será que alguma de nós pode dizer que sabe mais ou melhor?

Como feminista branca, tenho consciência de que não posso ditar as formas pelas quais as mulheres negras decidem lutar. Meu papel é de apoio. Não cabe aqui minha autorização ou endosso, elas não estão pedindo minha permissão. E isso porque, além de me faltar a vivência como mulher negra, nesse jogo eu, branca, sou a opressora. E em qual movimento o opressor dá as cartas do jogo? Que emancipação é esta, controlada pelos opressores? Que libertação é esta que não dá voz aos historicamente silenciados? Esse mesmo pensamento pode ser aplicado a todas as demais lutas, é questão de local de fala e protagonismo.

Num mundo em que mulheres são silenciadas, excluídas do debate público, dos centros de decisão e da história em geral, uma mulher dizer MAMACITA FALA, VAGABUNDO SENTA é revolucionário (Karol Conka, amor imenso). É revolucionário por ser empoderador para outras mulheres, deixando claro que não precisamos ficar quietas, que nossa função não é agradar. Temos o direito de estarmos indignadas. Somos controladas, limitadas, estupradas, ignoradas, silenciadas, ridicularizadas, diminuídas todos os dias. Mulheres morrem diariamente pelo simples fato de serem mulheres. E ainda nos perguntam de onde vem tanta raiva. E ainda nos exigem paciência e compreensão. E ainda nos exigem compostura e afeto. O que mais podem nos exigir?

Somos controladas, limitadas, estupradas, ignoradas, silenciadas, ridicularizadas, diminuídas todos os dias. Mulheres morrem diariamente pelo simples fato de serem mulheres. E ainda nos perguntam de onde vem tanta raiva.

O recente caso de uma adolescente que foi estuprada por trinta e três homens nos mostrou que se esperarmos pela boa vontade dos homens nada vai mudar. Muitas mulheres mal conseguiram dormir em função de tamanha perturbação causada pela notícia.

Poucos foram os homens a se pronunciar sobre o crime. A maioria deles parece viver num estado de constante indiferença. A cultura do estupro precisa ser discutida também pelos homens, apesar do silêncio ensurdecedor daqueles que foram ensinados que podem falar sempre.

Porque se calam diante da bárbarie do estupro? E porque nós, mulheres, ao invés de nos defendermos estamos preocupadas em não assustar os homens? Eles não parecem se preocupar em não nos violentar.

O que, afinal, querem as mulheres? Nós queremos autonomia para ser e decidir nosso destino, nós queremos nossa humanidade. E só assim os homens terão sua humanidade de volta. Antes de melhorar a vida dos homens, precisamos melhorar a vida das mulheres. E nós sabemos que ninguém vai nos conceder essa liberdade, nós precisamos conquistá-la.

Será que adianta pedir educadamente por um pouco de atenção, bater de porta em porta para difundir o feminismo de modo educado e gracioso, prometendo que não vamos incomodar? Por séculos homens e mulheres feministas têm usado esta estratégia. Não deu certo ainda. Não deu certo ainda porque ela é apenas uma de várias estratégias que podem ser usadas, e sozinha não é capaz de subverter a forte narrativa tradicionalmente imposta.

Não estou dizendo que campanhas como #HeForShe não funcionam. Funcionam até certo limite. Funcionam melhor se associadas a várias frentes diferentes de ativismo. E nessa luta, a voz do homem tem menor relevância justamente para compensar toda uma história em que eles são protagonistas. Homens podem e devem falar a respeito do feminismo mas não podem decidir como a luta será feita, seu papel é de apoio e conscientização. Ninguém vai nos conceder nossa humanidade. Nós precisamos lutar por ela, das mais diversas formas, com todos os braços que temos.

Homens podem e devem falar a respeito do feminismo mas não podem decidir como a luta será feita, seu papel é de apoio e conscientização.

Então vamos repetir até entender: não existe manual da boa feminista que garanta resultados.

Feminismo é um movimento imperfeito porque é feito por pessoas, por mulheres que lutam para serem tratadas como pessoas. É revolucionário e espontâneo e, portanto, não pode ser controlado. É movido pela dúvida, e não por certezas. É na dúvida que nós crescemos e nos fortalecemos. Então não fique triste se nem todas as feministas pensarem como você: nosso movimento é plural e conta com uma diversidade de protagonistas e de instrumentos de luta.

Nenhuma mulher responde sozinha pelo movimento, nossa demanda é coletiva e atravessa gerações.

Não se deixem enganar na esperança de serem ouvidas e aceitas pelo patriarcado. O feminismo nunca vai ser apresentado de uma forma boa o suficiente porque o seu conteúdo não contempla os interesses do status quo. Vai ter feminista boazinha, didática, pacífica, raivosa, escandalosa, debochada, sarcástica, intelectual, midiática, diva, fofinha, da rua, das artes, cientista, espiritualizada, materialista, festiva, melancólica.

Vai ter feminista sendo pessoa humana, porque mulheres são pessoas. E nós estamos em todos os lugares, atacando em todos os lados. Não há espaço na sororidade para controlar e restringir pois reconhecemos que reunidas temos mais força, e que em cada peculiaridade encontramos mais um braço combatente nessa luta iniciada por nossas ancestrais e que infelizmente não tem prazo para acabar.

Interseccionalidade é o cruzamento das diversas opressões que limitam a vida de diferentes mulheres. Se o sexismo está entranhado nas artes, na ciência, no trabalho, na mídia, nas favelas, nos condomínios de luxo, na política, nas escolas e universidades, nas instituições estatais e dentro das próprias famílias, como vamos reagir e subverter as verdades construídas sem estarmos atentas para o fato de que o que pode ser libertador para uma mulher, para outra ainda é fonte de sofrimento.

Como ignorar as peculiaridades que cercam cada classe? De que adianta uniformizar o feminismo se lutamos justamente contra os modelos únicos que ditam o que é o belo, o que é humano, o que é valorizado?

Nós queremos justiça e vida digna para todas e isso exige pluralidade de pensamento e de instrumentos na luta pela dignidade das mulheres. Não precisamos concordar sempre, precisamos nos entender com a empatia de quem sabe que não somos todas iguais e lutarmos pelo direito de sermos diferentes e ainda assim respeitadas.

Por Bruna Paludo
Imagem destacada: Birth Tear, tear de Judy Chicago (via Through the Flower)

Comments

Comentários

Ana Clara Delajustine

Uma psicóloga feminista em luta por mais afeto. Implica com a linguagem sexista e acaba com a graça em piadas machistas. Vive de amores. É uma multidão e explosão de sentimentos. Inquieta, teimosa e bruxa, tem fé nos encontros do mundo.

x
Glenda Varotto

Formada em publicidade e propaganda, 23 Blogueira do site humanista secular Bule Voador.

x
Teci Almeida

Roteirista, produtora de conteúdo, mãe e teimosa. Acredita que de tanto insistir ainda conseguiremos fazer desse mundo um lugar melhor.

x
Mônica Seben de Azevedo

Artista, artesã, designer – é o que costumo colocar nos cartões de visita. Ler e acumular livros de variados assuntos são tradições familiares. Já sonhei ser arqueóloga, pensei em cursar História, Filosofia, Sociologia ou Arquitetura, mas acabei escolhendo Artes, onde posso misturar tudo isso. Gosto de viajar pelo mundo, mas sempre volto para casa. Sou curiosa por natureza e tímida que fala pelos cotovelos se tomar muito café ou vinho. Mãe por opção e determinação. Para uns, sou muito certinha e para outros, muito doida. Na verdade, sou um pouco de cada.”

x
Início

popup-cdmj

x
Camila França

Camila França
Formada em Moda pela Udesc (2005) e pósgraduada pelo SENAC (2009) em Florianópolis, trabalhou por oito anos na indústria da moda como estilista. Em 2013, partiu em busca de qualidade de vida e atualmente dedica quase todo seu tempo ao desenho. Frequenta aulas de Artes Visuais a fim de conhecer e desenvolver sua própria poética. Seus desenhos exploram o universo feminino com técnica mista, grafite, nanquim, aquarela, marcadores e tinta acrílica.

x
Espiral

x
Thais Mendes

Jornalismo é a formação, produção de moda é o ganha-pão, escrita é a paixão. Radicada em Londres há mais de uma década, estudou no London College of Communication e depois foi trabalhar com um bocado de gente grande, de Adidas à Ivete Sangalo, da TPM à Vice, e gostaria de largar tudo e só escrever. Além de feminista, é progressista, ateísta, e uma porção de *istas* que causam desconforto por onde passa. Mãe de uma garotinha de 4 anos, com quem divide uma paixão por filmes japoneses e contos de fadas subversivos.

x
Thaina Battestini Teixeira

Thainá Battesini Teixeira, é gaúcha e tem 23 anos. Está no último ano de graduação em História pela Universidade de Passo Fundo – UPF e é bolsista de iniciação cientifica – CNPq pesquisando as Fontes Visuais Impressas: Possibilidades de Pesquisa: Os papéis sociais atribuídos ao gênero feminino na Revista KodaK. Milita pelo Coletivo Feminista Maria, vem com as outras! e participa da organização da Marcha das Vadias de Passo Fundo no Rio Grande do Sul.

x
Sandra Cecília Peradeles
Mina de comunicação – fala, fala, fala.
Formada em jornalismo, é  goiana, vira-lata, caçula de sete e doidinha de amores pela vida.
x
Stefanie Cirne

Em 22 anos de Porto Alegre (RS), cursou Comunicação Social sem ter certeza do que estava fazendo – e formou-se jornalista sem destino definido. Felizmente, está se realizando na esquina entre o feminismo e a informação. Escreve para (sobre)viver, aventura-se no audiovisual e é fascinada por todo tipo de linguagem. Aparece regularmente por aqui.

x
Patricia Chiela

Gosto de gente, de relações, de vida, de ajudar as pessoas a mostrar o valor do seu negócio, de ver uma empresa ir em frente, ser forte. Tive minha agência de comunicação por quase cinco anos, atuei em áreas de planejamento e também com inovação e gestão de pessoas. Paralelo a isso, como consultora, tive a oportunidade de dar vida para mais de uma dezena de empresas, ajudar tantas outras no processo de reposicionamento e ver surgir diversas campanhas e marcas. Hoje, estou a frente da Patrícia Chiela Estratégia de Marca, que atua para que a comunicação e o marketing ajudem uma empresa a olhar para frente, profissionalizar o negócio, construir o seu valor e prosperar.

x
Murilo Mattei

Estou me graduando em ciências sociais pela UFSC, interessado em tudo que possibilita questionar a condição humana e os infinitos problemas derivados do pensar abstrato; consumidor assiduo do incomum, non-sense, trash-cômico e da musica contemporanêa, crio musicas como “vinolimbo”.

x
Lucas Rezende Busato
Homem, branco, cis, hétero, reconhecedor do próprio privilégio: FEMINISTA.
Arquiteto e designer por formação, [des]construtor de espaços por ideologia.
x
Belle Kurves
Belle Kurves likes to cock a snook at the whole silly patriarchal system.
An explorer, Belle is about to set sail on a voyage of discovery that will be  her toughest expedition yet.  Look out for her dispatches from the frontier as Belle Kurves embarks on a quest to find the “new truth” foreshadowed by Hester Prynne – the key to establishing “the whole relation between man and woman [indeed all genders] on a surer ground of mutual happiness.
x
Caroline Rocha

C.rox, cigana vestida de aquariana transitando pelo mundo das artes. Gestora Deusa/Louca/ Feiticeira da Casa de Cultura Vaca Profana em Passo Fundo-RS. Produtora cultural e feminista até o caroço.

x
Bruna Kern Graziuso

Advogada especialista em direito público e de família, vegetariana e meia maratonista. Não convida se não tiver vinho. Chora toda vez que vê uma ovelha.

x
Beatriz Demboski Burigo

Estou no caminho pra uma graduação em Ciências Sociais, na UFSC em Florianópolis. Gosto muito do ativismo dos movimentos sociais, mas a minha praia mesmo é o backstage e o olhar sociológico sobre tudo. Sou de humanas, mas nem tanto! Amo antropologia, assim como amo falar sobre cultura pop, gênero e feminismo. No momento, pesquiso oficialmente sobre sociologia da educação, que é mais uma de minhas áreas de interesse.

x
Ana Paula Ferraz

Uma figura que vai variando entre a curiosidade sobre pessoas e lugares e o interesse por culturas e olhares. Psicóloga, metida com psicanálise, política e sociedade. Poeta de boteco, cervejeira de calçada, cantora de chuveiro. Enfim, mais um mistério do planeta.

x
Ana Emilia Cardoso
A meliante Ana Emília Cardoso é uma jornalista curitibana, com passagem por Florianópolis onde esteve detenta em mestrado de Sociologia Política. Por questões de segurança foi transferida para Porto Alegre e está em liberdade condicional. Trabalha com moda e pesquisas, tem 2 filhas, um marido famoso e acredita que pode mudar o mundo empoderando as mulheres.
x
Arieli Corrêa

Vestibulanda de letras. Desengonçada com a vida e jeitosa com as palavras. Possui diversos pseudônimos, intencionada a desnudar-se de aparência e travestir sua alma com novas visões de mundo. Queria ser Maria. Descobriu-se feminista há não muito tempo, e tem muito que aprender.

x
Aline Estevam

Manja das 7 melhores da Fem.

x
Fernanda Cacenote
Fê Cacenote, fotógrafa amadora (por amor) e profissional (por profissão) no projeto FEMMA Registros Fotográficos. Viajante espacial do mundo das ideias, colaboradora na Casa da Mãe Joanna, Casa de Cultura Vaca Profana, Coletivo Feminista Maria, vem com as outras!.  Vegetariana, amante das coisas que a natureza nos dá e feminista em eterna (des)construção e aprendizado.
x
Joanna Burigo

Comunicação social, educação e feminismo – não necessariamente nessa ordem. Já trabalhei em agências, produtoras, departamentos de marketing, escolas, projetos sociais e até no Coliseu (esse mesmo). Tudo isso, em diferentes graus, em Porto Alegre, Florianópolis, Madri, Roma, Dublin e Londres, onde fiz um mestrado em Gênero, Mídia e Cultura pela LSE. Mas eu saí de Criciúma, SC.

x
Maitê Weschenfelder

Acadêmica de Jornalismo e amante da fotografia, passeia entre o lírico do cotidiano e o drama de vidas reais. Uma jovem, louca, livre e solta. Sonha com igualdade e justiça social.

x
Emanuelle Farezin

Formada em jornalismo e apaixonada por pixels, trabalha com projetos de mídia. Faz do feminismo seu impulso diário.

x
Luana Caroline Girardi Basso

Desenvolvedora web e estudante de engenharia civil. Vegetariana e amante da natureza.

x