É hora de ir além
Estive uns três dias de cama, no final da semana passada. Bode com o mundo, desânimo completo. Fui derrubada. Sabe o que me moveu, acendeu a fagulha e me deu ganas de continuar vivendo e lutando? Um post de uma amiga, muito sábia, que disse:
“Galera, segura essa peteca e levanta a cabeça. Tá longe o momento de descansar, talvez esse momento não seja no nosso turno.”
Talvez esse momento não seja no nosso turno.
Essa frase ecoou na minha cabeça como os trovões e rajadas de vento da tempestade de ontem. Há momentos na história e na política que simplesmente não permitem esse sentimento individual e individualista de “se preservar”: é preciso agir para além de si. Só podemos existir – e só pudemos lutar nas últimas décadas e construir algumas pequenas vitórias – porque tanto na ditadura do Estado Novo, quanto na ditadura militar, quanto entre elas, havia gente agindo para além de si.
“Talvez esse momento não seja no nosso turno.”
Me vieram à cabeça todas as histórias que ouvi, da boca de quem sobreviveu pra contar. As memórias de infância, de ter crescido numa família ligada à política. “Meu pai faz greve”, respondeu meu irmão, ainda pequeno, em certa ocasião quando confrontado com a pergunta “O que seu pai faz?”. A história da fabulosa atiradora de bazuca da guerrilha chilena, contada pra mim diretamente de sua filha. As memórias de minha mãe que, ao passar no vestibular da USP escutou de meu avô, na época político da ARENA: “Cuidado, aquilo lá é um antro de comunistas”.
“Talvez esse momento não seja no nosso turno.”
Junto a esse post da Talita, com essa mensagem tão direta e clara, um outro post da Maíra Galvão (ah, família Galvão, aquela da Patrícia… ♥) falava sobre a estratégia de estarrecimento da população. Eles estão fazendo de propósito. É pra desbaratinar, é pra desarticular. Por isso, mais do que nunca, essa é a hora de lutar.
O nosso turno é o o turno de lutar e resistir.
O estarrecimento e a imobilidade frente a tantos ataques e tanta violência é o pior que pode acontecer. É hora da ação e, como bem pontuou a Renata Corrêa em mais um post [minhas amigas são minhas heroínas, cara]: Acabou o amor.
Ocupar e juntar na rua pra fazer festa-show (vide 1º de maio no Anhangabaú), ciranda de abraços e danças circulares apenas dizendo “Não passarão” é quase o mesmo que dar a esses que não deviam passar um fucking passaporte. Sem uma atitude combativa da esquerda, eles passarão e nós nem passarinho (estilingues e gaiolas em toda parte).
Acabou o amor.
Lembram daquela história da carochinha que contaram pra mim e pra vocês desde os anos 1990, e que parecia fazer tanto sentido nos 13 anos de governo do PT, de que a gente conseguiria mudança com “trabalho de formiguinha”? De que a sua ação individual podia “mudar o mundo” (“Seja você a mudança”)? De que bastava fazer “a sua parte” por um “mundo melhor”? Pois os fatos políticos estão mostrando cada vez mais o quanto não podemos contar com essas estratégias. Porque eles têm ferramentas pra jogar concreto no solo – e aí formigueiro cresce como?
Acabou o amor.
As ações diretas organizadas – ocupações politizadas, greves, desobediência civil organizada – são a nossa única chance de sobreviver. Mas também não se enganem: elas não são suficientes e não devem ser vistas como um fim em si mesmas. Uma boa lição sobre isso: os secundaristas em SP ocuparam a ALESP pedindo a CPI da merenda. Descouparam e conseguiram a CPI. Presidida pelos próprios envolvidos no desvio da merenda. E aí? Comofaz?
Acabou o amor.
É preciso ir além. Nossa ação tem que ir além de nós mesmos, de nossos confortos e desconfortos individuais. Isso é política.
Nossa luta tem que ir além dos momentos de ação direta e das reivindicações pontuais, se quisermos construir uma sociedade livre de toda exploração, se quisermos ser donos de nós mesmos, de nosso tempo, de nosso trabalho, do conhecimento e dos bens materiais e simbólicos que produzimos.
Acabou o amor.
A hora é de lutar, resistir. E essa luta e resistência precisam ser bem costuradas, articuladas, com a construção de um projeto de sociedade. Não se trata de pautas específicas. Os fatos políticos nos mostram que pautas específicas não darão conta. Se conseguir defender o SUS, ele será em seguida sucateado, ou o aborto será definido pelas igrejas, ou vão privatizar a educação básica e superior. Os inimigos têm a máquina estatal, os investimentos do grande capital internacional, o apoio político do Império (Temer é citado na Wikileaks como informante da CIA, estão sabendo? A embaixadora dos EUA presente no Brasil nesse processo de impeachment era a mesma que estava no Paraguai e no Equador nos seus respectivos golpes recentes, etc.). Nós temos as nossas mãos.
Façamos nós por nossas mãos.
A conjuntura política exige que nossas mãos atuem coordenadas; que construamos uma luta comum e organizada, por um projeto de sociedade comum (e não por pautas específicas). É hora de organizar. É hora de se articular.
Organizados nossos braços se multiplicam, e a agonia da sensação de impotência é substituída pela força da coletividade. Porque eu sei que, enquanto estou auxiliando os estudantes em uma escola ocupada, meus camaradas do sindicato dos professores estão articulando estruturalmente um enfrentamento massivo. Porque eu sei que, enquanto estou em fóruns populares de saúde articulando a questão do aborto, meus camaradas trabalhadores e trabalhadoras do SUS estão estabelecendo as bases de uma luta que está por vir. Porque atuamos como um só em diversas frentes. As mãos de meus camaradas são também minhas mãos, e a ação organizada é que permite essa âncora, esse fio condutor do enfrentamento política.
Façamos nós por nossas mãos.
É hora, mais do que nunca, de se organizar. Seja em um partido, seja em seus sindicatos e associações profissionais, seja articulando seu coletivo com lutas mais amplas e frentes de massa. Sair do individual-individualista, sair da pauta específica.
É hora de ir além.
Por Marília Moschkovich
Post originalmente publicado em mariliamoscou.com.br
Imagem destacada: daqui
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