Je suis optimiste

Morre gente em Beirute, morre gente em Paris, morre um rio no Brasil. E junto morre também a era da seleção a respeito de qual morte merece mais comoção. Morre devagar, mas morre: a informação já não mais fica presa nos filtros obscuros das instituições de poder, pois ainda que a mídia hegemônica insista em promover a indignação seletiva e a dicotomia míope do nós X eles, o imaginário social que a alimenta (e que por ela é alimentado) também anda equipado com instrumentos midiáticos. A emissão da palavra tá na mão.

Há quem esteja fazendo uso da acessibilidade de emissão da palavra para justificar a seletividade da indignação, dizendo ser mais fácil sensibilizar-se com a tragédia daqueles com quem partilhamos um senso de identidade. Há quem esteja usando a palavra para registrar que indignação seletiva é construída, e que com um pouco de treino e bastante boa-vontade é possível ter empatia por aqueles em quem não nos reconhecemos. Há quem esteja usando a palavra para proferir preconceitos, ainda que em nome do bem, da moral e da tradição. Há quem, de carona nas tragédias do noticiário, use a palavra para promover sua própria desorientação. Também há quem não esteja dizendo nada, por não querer, não saber ou não ter o que dizer, ou ainda por medo de que considerem sua expressão inadequada. A emissão da palavra tá na mão, e nunca foi tão fácil fazer uso dela, para bem ou para mal.

Bombas explodem, matam a mata a fogo ou água suja, ignorâncias fomentam intolerâncias. O medo, a discriminação e as tragédias pautam a discussão. Sabemos que o fundamentalismo é a raiz de tanto extermínio – e pouca diferença faz se ele é religioso, intelectual, político ou capital… Sabemos que morrem mulheres pelas mãos do machismo sistêmico. Sabemos que a ganância estrutural já matou bem mais de um ecossistema. Sabemos que sabemos de todas essas coisas, mas não sabemos exatamente o que fazer com elas além de tentar falar sobre elas.

A era do silenciamento excludente está pela bola sete, mas não por falta de tentativa dos que se beneficiam de certos silêncios, e sim pela força da articulação coletiva de quem quer fazer valer a sua voz, tenha ela razão ou não. Só que no meio dessa cacofonia, quem agoniza é a dialética. Ressuscitemos, pois, a reflexão. Se possível (e sempre é possível), com compaixão.

Morre muita gente, morrem a fauna e a flora, e também morre aos poucos a cultura de que existe uma verdade superior, ainda que uns e outros tentem mantê-la, com muito esmero e um assustador grau de sucesso. As evidências da insustentabilidade da crença na supremacia de um pensamento em detrimento de outros se acumulam: agora morrem os que fizeram do seu berço aquele que é esplêndido. Mas seguimos matando, muito mais, os mais vulneráveis.

Que morra a possibilidade de pensar que essas mortes são inevitáveis, e que morra também a possibilidade de não nos reconhecermos como responsáveis por elas. Que morra aí uma outra possibilidade: a de atribuirmos o horror apenas a quem não somos nós. Que morra junto a nossa cegueira em relação ao ponto de vista do outro, e que em seu lugar surja a escuta generosa, a única que dá origem à possibilidade do real diálogo.

Já nasceu a consciência da força que temos quando temos a palavra na mão. A esperança é que essa consciência se estenda para assimilar que há múltiplas interpretações do que nunca é uma mesma verdade. Que a partir dessa realização se dê o aniquilamento da confusão entre expressar discursos de ódio e ter liberdade de expressão. Já nasceu há tempos a era da multiplicidade interpretativa. Já há muito pulsa essa nova vida. A palavra já tá na mão. Falta agora tirar a mão dos olhos e dos ouvidos.

Por Joanna Burigo

Comments

Comentários