O racismo, eu e os outros

2010 Estava na praça de alimentação de um shopping com meu afilhado e, depois de me observar insistentemente, um garotinho branco se aproxima de mim e comenta:

– Seu cabelo é muito feio! Você não penteia não é?

Perguntei por que ele achava meu cabelo feio. “É duro, igual ao da empregada lá de casa. Parece bombril de lavar prato”, disse, rindo.

2012 Estava no elevador de um centro comercial e uma garotinha negra elogia o meu cabelo e diz que gostaria de ter um igual, mas que a mãe não deixava porque dizia que era ‘coisa de preto pobre’ e, por isso, alisava. Esse episódio me marcou tão fortemente que escrevi um artigo a respeito, que foi publicado no A TARDE e compartilhado por várias pessoas no Facebook. Alguns dias depois da publicação, o jornal recebeu a visita de alguns alunos de uma escola particular e uma professora veio me dizer que uma das crianças gostaria de conhecer ‘a jornalista que publicou o artigo’. Ela havia trabalhado o texto com os alunos em sala de aula. Era Caio, um garoto loiro de 10 anos. Ele pediu para tirar uma foto comigo e disse: “Sonho com o dia em que nem você nem a menina do elevador precisem mais passar por isso. Ninguém deveria. É muito triste”. Durante a conversa, também confidenciou que queria ser jornalista quando crescesse (“para falar de causas sociais”) e que era apaixonado por uma menina negra da escola, a única da sala.

2016 Estava andando em um shopping da cidade e uma garotinha negra apontou para mim e comentou com a mãe:

Mãe, ela é igualzinha à Anyango. Que linda!

Sorri e me aproximei das duas. Começamos a conversar e a pequena Lara me contou que Anyango era uma das suas bonecas negras. Anyango é também um nome africano que significa ‘amiga’. “Ela é linda como você”, comentou a garotinha.

Neste dia, depois de ter dado um abraço apertado e demorado em Lara e na mãe dela, fiz o caminho inteiro de volta pra casa chorando feito criança. Aquele encontro me fez recordar um episódio bem triste da minha infância:

1987 Eu tinha 5 anos e minha mãe havia me ensinado a rezar antes de dormir. Ela dizia que Deus era capaz de realizar todos os meus sonhos, bastava pedir com muita fé. Então, todos os dias, rezava o Pai-Nosso, a Ave Maria e o Santo Anjo, e fazia um pedido: pedia pra Deus me tornar branca e que me fizesse acordar com o cabelo igual ao da Barbie e das minhas coleguinhas da escola.

Lembro-me que sempre ia dormir muito ansiosa (e talvez isso explique a razão de eu ter problemas de insônia desde a infância) porque acreditava que ‘papai do céu’ fosse atender o meu pedido. Todas as manhãs, corria para o espelho e me decepcionava ao ver a imagem refletida. Eu não gostava do que via. Eu não gostava de mim. Perdi a conta das vezes em que chorei compulsivamente e me peguei duvidando da existência de Deus. Achava que, como os outros, ela também não gostava de mim por ser negra.

Eu não gostava do que via. Eu não gostava de mim.

Isso só mudou anos mais tarde, na pré adolescência. Neste período, as únicas referências negras que exerciam cargos diferentes daqueles normalmente ocupados por pessoas da minha raça eram o meu pai, que é jornalista; e a também jornalista Glória Maria. E, sem dúvida alguma, a minha escolha profissional é resultado disso. Admirava a inteligência e o conhecimento do meu pai que, ‘apesar de ser um homem negro’, era respeitado por todos. Era a única pessoa da família que falava igual aos brancos da minha escola, das festas e eventos que íamos juntos. No meio deles, meu pai até parecia igual. Eu queria ser como ele. Também queria ser como Glória Maria, uma mulher negra bem sucedida e, até então, a única jornalista negra da TV brasileira. Ela era a única referência de mulher negra que eu tinha que não era babá, empregada doméstica, zeladora, faxineira.

Só passei a não querer mais ser branca quando acreditei que poderia ser como eles dois. Eu só passei a gostar do que via no espelho quando acreditei que o meu futuro poderia ser diferente daquele que os meus colegas racistas do colégio me fizeram acreditar que fatalmente teria. Passei a gostar tanto da minha imagem que quis ser modelo. Incentivada por meus pais, fiz curso, book fotográfico e passei a desfilar. E quanto maior era a minha autoestima, maior era o preconceito que sofria. Ao me ver em um comercial na televisão, um colega do colégio comentou na sala de aula, em tom de galhofa:

– Vocês viram Fabiana na tv, gente? A negrinha agora quer ser modelo. Vê se pode!

Todos riram! Ninguém elogiou ou fez nenhum tipo de comentário positivo. Eu tinha apenas 12 anos, mas já acreditava que seria o que quisesse, independentemente do que as pessoas pensavam e falavam sobre mim.

Esse resumo de algumas situações que vivi é apenas para falar do poder da representatividade e do que ela pode causar na vida de uma pessoa negra. A falta de representatividade traz inúmeras consequências e nos afeta em todas as esferas sociais: relacionamentos afetivos, trabalho, família. Ela afeta até mesmo a nossa fé e nossas crenças.

As referências sociais são fundamentais na formação da identidade e personalidade de uma criança. Uma boneca negra para uma criança negra representa mais do que um brinquedo. Assim como os livros que lhes são apresentados e nos quais há negros como protagonistas; os artistas, professores e as pessoas em geral que ela aprende a admirar e passa a ter como referência. E, na infância, essas referências são acessadas, sobretudo, por meio dos pais e responsáveis diretos da criança.

Então, eu lhes pergunto:

O seu filho é o menino que acha o cabelo crespo feio porque é igual ao da empregada e parece bombril ou é o garoto que se entristece diante das situações de racismo? Que tipo de educação vocês estão dando aos seus filhos, sobrinhos, afilhados? Quais são os livros que eles leem e as pessoas que eles admiram? Quais são as referências sociais que eles têm? Vocês estão ajudando os seus filhos a acreditarem que podem, sim, ser domésticos, garis, zeladores, faxineiros, mas também princesas, juízes, médicos, engenheiros, promotores, protagonistas da novela? Vocês têm ideia do quanto são responsáveis por isso?

A desigualdade é gritante, ainda somos minoria em muitos espaços e profissões, mas tem um monte de gente trabalhando para tentar mudar essa realidade. Há iniciativas lindas acontecendo. Leiam, pesquisem, se informem e permitam que eles tenham como referências pessoas nas quais eles possam se espelhar, pessoas com as quais eles possam realmente se identificar. São essas pessoas que os motivarão a seguir em frente, independentemente do racismo e de todo o preconceito que, infelizmente, somos obrigados a passar diariamente.

É preciso estar atento (e forte).

Lembrem-se: o futuro dos seus filhos depende disso.

Por Fabiana Mascarenhas
Imagem destacada: HuffPost

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