Marielle, MulheRaça

Aos 14 de março de 2018 uma das vozes mais potentes da luta por direitos humanos e equidade no Brasil foi brutalmente calada. Marielle Franco foi executada quando voltava para casa após o evento “Jovens Negras Movendo Estruturas”; o motorista que a levava, Anderson Gomes, também foi assassinado. Um mês depois, a pergunta “Quem matou Marielle e Anderson?” permanece sem resposta.

Apenas 18 meses antes Marielle tinha sido eleita vereadora no Rio de Janeiro, com 46.502 votos. A hashtag de sua campanha eleitoral era #MulheRaça, o que já apontava para o comprometimento da vereadora com o tratamento político que deve ser dado a questões de gênero e raça. Aos 38 anos, era a única negra entre as sete mulheres que compõem a Câmara Municipal. Marielle rompeu barreiras, e encarnava esperança para tantas pessoas cujas vozes são marginalizadas no sistema político brasileiro. Negra, lésbica, mãe e cria da favela da Maré, como ela mesma gostava de afirmar, apesar de todos os obstáculos obteve sucesso num sistema político em que pessoas como ela são minoria, embora sejam a maioria da população brasileira.

Mesmo depois de sua morte Marielle Franco une mulheres, feministas e residentes de algumas das comunidades mais pobres do Brasil, o que indica que seu legado continuará vivo. Seu trabalho, no entanto, não era bem recebido por todos. Ela se opunha a políticos conservadores, em sua maioria homens brancos, cujos projetos não representam a maior parcela demográfica do Brasil. Marielle abre seu brilhante ensaio “A emergência da vida para superar o anestesiamento social frente à retirada de direitos: o momento pós-golpe pelo olhar de uma feminista, negra e favelada” (1) para o livro Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil, com o parágrafo a seguir:

“O impeachment sofrido recentemente pela primeira presidente mulher brasileira foi uma ação autoritária, ainda que tenha se utilizado de todo arcabouço legal como justificativa. De um lado a presidenta, mulher, vista por parcela significativa da população como de esquerda. De outro lado um homem, branco, visto por parcela expressiva como de direita e socialmente orgânico às classes dominantes. A conjuntura brasileira, determinada pelo cenário do golpe, marca-se, para além da correlação de forças políticas, favorável às classes dominantes e seus segmentos mais conservadores. Principalmente por alterações sociais significativas na esfera do poder do Estado e no imaginário. Trata-se de um período histórico no qual se ampliam várias desigualdades, principalmente as determinadas pelas retiradas de direitos e as que são produto da ampliação da discriminação e da criminalização de jovens pobres e das mulheres, sobretudo as negras e pobres.”

Os tristes dias que seguiram a execução de Franco viram debates acirrados acerca do significado de tamanha tragédia, sobretudo críticas a quem tratava o ocorrido como consequência direta do recrudescimento de ações políticas autoritárias subsequentes ao impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff. Marielle, em seu artigo, apontava para o fato de que o cenário político pós-golpe certamente acentuaria a exclusão social, porém não permitia que o leitor esquecesse que o abismo social no Brasil, fortemente marcado por gênero e raça, precedia este momento histórico. Homens e mulheres negras são vítimas frequentes de violência estatal, e o assassinato de corpos negros infelizmente não é exceção no país. A execução de Marielle, embora informada por características peculiares à sua posição política, confirma uma regra nesta nação.

Marielle também se opunha ao tratamento de populações periféricas como sendo marcadas apenas por carências, e dizia que sujeitos pertencentes a estes grupos têm papel central em, e eu a cito, “ações criativas e de conquistas de políticas do Estado que atuaram no caminho inverso das desigualdades, ampliando direitos em várias dimensões humanas”, conquistando assim “alterações em seus territórios” e propondo “novas localizações no imaginário popular e para as relações humanas”.

Em um ranking de 190 países sobre presença feminina feito pela União Interparlamentar, o Brasil ocupa a 152ª posição, atrás de países como Somália e Afeganistão. Poucos dias após a execução de Marielle Franco, circulava nas redes sociais um questionamento que ia mais ou menos assim: que sistema é esse que nos bombardeia com notícias sobre políticos autoritários, mas só me fez conhecer Marielle após sua morte? Este sistema é o que feministas há muito tempo vêm chamando de patriarcado, que em perene aliança com a supremacia branca tem por hábito – e necessidade de sustentação – apagar as histórias, lutas, narrativas, ações, estratégias e epistemologias produzidas e promovidas por mulheres e pessoas não brancas, mantendo assim, na base da violência, um discurso hegemônico de superioridade.

Marielle lutava francamente e corajosamente contra o autoritarismo que informa o machismo, o racismo e o elitismo, típicos da política nacional. Cabe a nós manter vivo seu legado.

Por Joanna Burigo (2)

(1) O ensaio está disponível no link: https://bit.ly/2FQdOXw
(2) Fundadora da Casa da Mãe Joanna, coordenadora da Emancipa Mulher e co-organizadora do livro Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil, juntamente com Winnie Bueno, Rosana Pinheiro-Machado e Esther Solano, e publicado em dezembro de 2017 pela Editora Zouk em parceria com a #CDMJ.

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Texto originalmente publicado na Folha de São Cuca, do coletivo CUCA “Circuito Universitário de Cultura e Arte” de alunxs da Universidade do Extremo Sul Catarinense, a UNESC.
Foto da imagem de capa via Pragmatismo Político

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