#PrecisamosFalarSobreAborto

Tenho lido algumas lideranças do campo da deficiência se posicionarem equivocadamente sobre o aborto em contexto de epidemia do vírus zika, alegando se tratar de eugenia. Sequer conhecem as premissas feministas sobre a questão. Zombam do conceito de “escolha”. O que significa escolha para o feminismo? Nem mesmo sabem a diferença entre “aborto eugênico”, “aborto seletivo” e “aborto terapêutico”.

Neste sentido, gostaria de dar meu posicionamento pessoal, conciliando as duas perspectivas: feminismo e deficiência. Eu ser feminista e pessoa com deficiência não é algo incompatível para a defesa do direito ao aborto em contexto de epidemia do vírus zika. Antes de eu ser uma pessoa com deficiência, sou mulher. Como mulher com deficiência experimento a deficiência como uma experiência generificada, isto é, socialmente marcada pela dimensão de gênero. Só por esta “dupla experiência” tenho plena convicção do que significa ter o “direito de escolha” para habitar livremente “dois corpos”: o corpo feminino e o corpo deficiente.

A questão do corpo é uma premissa central nos movimentos feministas e de pessoas com deficiência. Mas a escolha precede a liberdade de ser (marcada pela condição existencial) e ter (marcada pela condição material). De onde venho, “direito de escolha” não é algo trivial para meus “dois corpos”.

As pessoas com deficiência já mostraram que as barreiras sociais que enfrentam cotidianamente não estão primariamente em seus corpos, mas na estrutura social incapaz de acolher as suas demandas por acessibilidade. As barreiras sociais são cruciais para compreender a deficiência porque quanto mais incapaz a estrutura social para prever a diversidade corporal/funcional, mais severa é a experiência da deficiência. Deslocar a compreensão da deficiência para o contexto, ao apontar para as barreiras sociais, desestabiliza a noção de deficiência como um “problema médico”, em que ela passa a ser um modo de vida, uma possibilidade digna e constituinte da condição humana.

As pessoas com deficiência já mostraram que as barreiras sociais que enfrentam cotidianamente não estão primariamente em seus corpos, mas na estrutura social incapaz de acolher as suas demandas por acessibilidade.

Em 2003 fui apresentada ao Movimento de Vida Independente no Brasil, atraída pelo mote da “vida independente”, cerne do empoderamento das pessoas com deficiência. “Vida independente” para nós não significa ir em busca de independência. Não é propriamente brigar para não depender da ajuda de outros para as tarefas cotidianas que mais temos impedimentos físicos, sensoriais ou cognitivos para realizá-las, até porque reconhecemos que as relações humanas são de dependência.

Para as pessoas com deficiência desse movimento social, vida independente tem outro sentido, que é o de ter direito à escolha.

Vida independente é tomar suas próprias decisões. Uma pessoa com tetraplegia severa pode não ser capaz de se vestir sozinha (por restrição de autonomia), mas ela tem independência para decidir e escolher que tipo de roupa quer vestir. A autonomia (controle sobre o próprio corpo e sobre o ambiente mais próximo) e a independência (faculdade de decidir por si mesma) são os dois lados da mesma moeda, fundamentalmente importantes na vida das pessoas com deficiência. É por isso que “vida independente” tem o sentido de “direito de escolha”, algo não trivial também para as pessoas com deficiência.

Para muitas mulheres o direito de escolha ao aborto é uma premissa feminista sagrada. Homens batem, estupram e matam meninas e mulheres porque desde cedo foram socializados dentro de uma cultura machista e misógina que os ensinou que mulheres são sua propriedade e, portanto, devem se submeter à vontade masculina. Por isso, a urgência de proteger as mulheres deve prescindir do domínio masculino para dar lugar ao “direito de escolha” sobre seu corpo em qualquer situação, inclusive quando envolve questões de autonomia reprodutiva. Não é por acaso que o conhecido bordão “meu corpo, minhas regras” parte justamente dessa premissa.

A zombaria em torno do argumento da escolha pelo aborto, afirmando que não seria eugenia se a defesa ao aborto fosse ampla, geral e irrestrita, desconsidera a distinção entre feto e pessoa, bem como o momento político em que estamos vivendo nessa longa luta pela descriminalização do aborto no Brasil. No contexto de uma epidemia pelo vírus zika, não se trata de escolher entre o feto x ou y, mas em garantir que as mulheres possam exercer sua autonomia reprodutiva independentemente de qualquer condição clínica que o feto possa apresentar.

É sempre uma questão de ética feminista o deslocamento do debate sobre aborto do direito ao corpo para que se possa conter a epidemia. Nunca é urgente legalizar o aborto somente agora que surgiu o vírus zika, sempre foi urgente legalizar o aborto por questões de saúde pública, já que são as mulheres mais pobres, negras e da periferia quem morrem todos os dias por causa de abortos inseguros feitos em clínicas clandestinas.

A decisão pelo aborto pode até se apoiar em questões médicas associadas aos altos riscos para a mãe e o bebê, mas precisa ser sempre uma decisão de foro privado da mulher e não do Estado nem dos homens, seja pai, marido, namorado, irmão, sobrinho, filho, padre, aluno, médico ou juiz. O aborto é sempre uma questão personalíssima da mulher.

Por Anahi Guedes de Mello, antropóloga
Imagem destacada: daqui

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