Gilmore Girls Revival e relacionamentos abusivos

Eu não olhava Gilmore Girls na minha adolescência, não tenho certeza por quê.

Lembro que achava o nome meio bizarro – “Tal mãe, tal filha” em portugês do Brasil. Em que mundo essa relação poderia ser real?

Pula pra 2016, Netflix resolve disponibilizar todas as 7 temporadas, os djóvens têm um colapso na vida social para rever tudo até novembro (mês de estréia do revival) e eu resolvo assistir de verdade essa história.

Resultado: aumento no vício em café, desejo de mandar a dieta pro brejo e só comer tele-entrega e felicidade interna pela coragem do seriado em ser vanguarda na abordagem sobre feminismo na tv .

Gilmore Girls já quebrava, no início dos anos 2000, muitos estereótipos da mulher na sociedade. Imagina como seria desconstruir mais a fundo? É exatamente aí que chegamos nesse Revival que se passa em 2016.

Ok, ele começa meio estranho, com personagens novos que tu não entende por que estão ali, como o esquecido-novo-namorado de Rory, Paul. Depois fica claro que ele era só mais um sinal do tanto que a personagem era mimada e que estava precisando levar uns tombos da vida para crescer.

Além disso, depois de 9 anos, todo mundo queria dar uma olhadinha na cara dos atores e ver o que o tempo fez com os mais sumidos. Mas alguns apenas cruzam na frente das câmeras — não havia tempo e nem história para toda galera em quatro episódios-filmes.

Minha única reclamação: queria muito que Sookie tivesse tido uma participação maior. Pra mim a relação de amizade dela com Lorelai sempre foi tão maravilhosa, com tanta sororidade. Mas imagino que ela deva estar muito na correria com a vida hollywoodiana – foi sensacional ela ter conseguido participar.

Mas vamos entrar nas profundezas que esse revival tocou.

Primeiro, já que a série começa com altas discussões entre Lorelai e Emily, damos de cara com relacionamentos abusivos.

Quando pensamos no tema é fácil relacionarmos à casos amorosos. Porém, o que Gilmore escancara é a relação abusiva entre pais e filhos — since 2000!

É muito difícil gostar da forma como Emily trata Lorelai, mas mais complicado ainda é ver esta lutando sempre contra a mãe e seu passado cheio de dinheiro. Mesmo assim, pode-se dizer que a personagem da avó causa empatia. Quem não conhece alguém como Emily? Na família, em amigos, pessoas próximas. Esse lado conservador, preocupado com o olhar da sociedade sobre a vida privada que precisa aparentar ser perfeita, o destruir de sonhos para se trabalhar sem fim em busca de uma fortuna que nunca será gasta. Eu consigo pensar em várias pessoas…

Talvez alguns apaixonados pela série não tenham percebido os níveis de abuso emocional presentes sempre que Lorelai e Emily se comunicavam. É difícil lembrar da mãe dizendo algo positivo para a filha, parece que só há espaço para rancor pelos anos afastados da neta.

Até mesmo quando Emily se encontra com a dona do hotel que Lorelai trabalhava, pessoa encantadora que deu emprego de camareira pra uma adolescente grávida, não se percebe culpa ou arrependimento por ter afastado uma filha que seria um escândalo na coluna social e sim ciúmes pela mulher se apresentar mais “importante” no crescimento da neta.

É muito interessante ver os dois lados que os patriarcas (sim, porque Emily é bem machista) Gilmore tomam quando se encontram com filha e neta. Mesmo lutando por atenção, Lorelai nunca será o que Rory pode ser. Na descendente é derramada toda expectativa não alcançada pela filha destruidora de famílias.

Talvez por isso Rory tenha ficado tão confusa na vida quase adulta, entre o que sua mãe sempre defendeu e os avós desconstruíram depois. De um lado a importância da verdade, dos relacionamentos, do outro do dinheiro e da aparência.

E, ainda, talvez por isso Lorelai lute tanto internamente para ir sempre contra qualquer ideia próxima do que a mãe gostaria que ela fizesse, mesmo quando faria bem — o que é raro.

Então, vem a vida com toda a sua treta e faz com que a família se despeça de Richard, pai de Lorelai e marido há muitos anos de Emily. Nem Marie Kondo conseguiu organizar a bagunça que vira a vida das Gilmore Girls, mas parece que a perda possibilitou que mãe e filha acessassem memórias que andavam escondidas pelo orgulho.

Deve ser difícil pra uma filha tentar se lembrar de momentos felizes com seu pai quando ele não é presente. E quando é, se tornam recorrentes as cobranças seguidas de portas fechadas. Fico feliz por Lorelai ter se permitido recordar uma das poucas vezes que Richard foi pai, pois ele parecia se dedicar mais a ser avô.

Não podemos deixar de lado outra figura paterna, Christopher, que apareceu apenas para dar o ar de sua infantilidade:

Por que você não foi um pai presente? Lutou para ajudar minha mãe, ficar perto de mim? — pergunta Rory.

A resposta não existe, fica evidente. Nem colocar a culpa em Lorelai Christopher consegue, o que seria muita ousadia, diga-se de passagem. Imagino que ele, depois de se tornar pai solteiro, consiga ter uma remota ideia das privações que sua ex-namorada-esposa teve que passar para manter a filha aos 16 anos.

Mas nada se compara ao fato de ele ter ficado emburrado por não ter se casado com Lorelai, que não queria ser obrigada a nada nessa vida — ainda mais ter que criar duas pessoas, né, porque ele não leva jeito pra responsabilidades.

Infelizmente, existem muitos casos de homens que só gostam da ideia de serem pais, porque na prática não fazem nada. Chris é um ótimo exemplo, pois ele nunca se preocupou em ligar para saber se a filha estava passando por alguma necessidade. Ele só se fazia presente quando queria tirar Lorelai do eixo — que, convenhamos, não era muito difícil ainda mais vindo de uma paixão da adolescência.

Mas que fim levou essa criança, que foi criada pela mãe solteira, sem dinheiro da família rica e que trabalhava pra comprar leite?

Ela cresceu feliz em uma pequena cidade sem muitas regalias, mas com muitos livros. Se tornou o oposto da mãe com relação a dinheiro, que queria se manter afastada da vida dedicada à sociedade dos pais — o que, de alguma forma, talvez pela idade, despertou o desejo de aproximação na adolescente com relação a esse universo fancy dos Gilmore. Com direito a baile de debutante, carro quando formada na escola e uma poupança recheada, a jovem teve tudo e mais um pouco.

Não podemos negar que Rory é muito mimada. De todos os lados. Então, sempre que ela não escolhia o caminho óbvio na vida era uma pequena vitória na história. A personagem volta 9 anos depois tão perdida quanto estava no final da sétima temporada. E isso é bom. Não é fácil não seguir as regras sociais. Não é fácil envelhecer sem conquistar o que havia planejado. Não é fácil aceitar o fracasso e continuar.

Mas ela continuou, quase que empurrada e cometendo alguns errinhos de baixa auto estima que não precisava. Logan, os anos te fizeram muito bem, mas tu continua sendo um babaca.

É até engraçado ver como Rory fica convencida depois de UMA matéria sua sair em um grande jornal. Como ela não aceita voltar para a cidade natal e morar com a mãe aos 32 anos. Com suas coisas em 6 casas diferentes, para que possa fugir quando bem entender, demora um pouco para a personagem internalizar que já é responsável pelas suas ações e que fora da sua zona de master conforto, ninguém vai tratá-la como uma princesa.

E por fim, a mestra dessa obra, Lorelai, que vive entre a adolescência e vida adulta.

Eu imagino o quão difícil seja conseguir deixar de lado o rancor pelos anos de abuso familiar. Penso ser ainda mais complicado quando há muito orgulho presente. Mas Lorelai se mostra nesse revival mais madura – e com algumas plásticas. Lidar com a finitude, ainda mais quando ela chega antes das coisas serem consertadas e ditas leva consigo muitas lágrimas.

Muitas mesmo. Eu sentia cada vez que a atriz chorava um sentimento real de sofrimento. As lembranças, as pessoas, o ambiente, a perda do pai e colega (o ator, Edward Herrmann, morreu em 2014), a ideia de finalização de um ciclo — que lhe foi negado no passado — encharcava mais aqueles olhos azuis.

O orgulho fica de lado quando um lugar fora do comum – para ela a natureza – se torna uma opção de fuga. O silêncio que nunca dura em Gilmore Girls permitiu à personagem acessar uma memória feliz da infância, um cantinho que Lorelai negava existir. E depois de muitos anos brigando com a mãe, um momento de felicidade é compartilhado por elas em formato de confissão. Talvez tenha sido esta a única lembrança feliz com Richard, mas o importante é que ela existiu.

Ah, não posso deixar de lado o fato dela ter se decidido sobre Luke — ou ele sobre ela. O relacionamento deles sempre foi meio bizarro, tinha um ar protetor meio pai que vinha dele e de adorar não precisar ser adulta do lado dela. No fim eles ficam juntos, mas sem resolver os problemas que os separaram no começo.

Sempre achei meio estranho o fato de Luke excluir completamente Lorelai do convívio com sua filha. Sei lá, ainda falta nos dois amadurecimento emocional, talvez por nunca terem tido um relacionamento estável. Mas o mais legal dessa relação é que ela não muda, mesmo com eles morando juntos. Tá, não muda até ali, pois com Luke na cozinha Lorelai diminui um pouco os pedidos por tele-entrega. Eles não se tornam aqueles casais boring que vivem para o relacionamento. Eles continuam tendo suas vidas, suas individualidades e tudo ótimo. Até rolar uma crise existencial seguida de uma viagem hilária, mas né. Se fosse perfeito não seria Gilmore.

Se vamos ver essas gurias de novo não sei. O final da série me deixa acreditando em um “talvez” — e que final minha genteeeeee. 2016 não salvou ninguém! Se for o caso, espero que demore menos, pois estávamos precisando desse universo feminino-real-fictício de Stars Hollow.

Por Gabriela Teló 
Post originalmente publicado no medium da autora, de onde também vem a imagem destacada

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