Anti-negritude na pauta da defesa animal: algumas considerações
Primeiro de tudo, eu não acho que todo vegano ou vegetariano seja racista. Inclusive ser de terreiro não é contraditório a ser vegano/vegetariano. A questão aqui é concepção de mundo e pressupostos civilizatórios. Não são os veganos e os vegetarianos que são racistas (não que não tenham veganos e vegetarianos escrotos, mas né… tem quilos de Bolsominions onívoros …), a pauta da defesa dos animais é que o é. A pauta da defesa dos animais é racista e classista, e eu vou explicar porque.
Para compreender essa questão precisamos falar com seriedade sobre industria alimentícia, cadeia de produção de alimentos e sociedade de consumo. A percepção das comunidades tradicionais de matriz africana sobre alimentação são distintas das vigentes na sociedade capitalista. E isso pode parecer complexo de compreender, uma vez que essas tradições estão, devido as consequências da escravização e da colonização, inseridas dentro de uma lógica capitalista, que é o que se dá no Brasil. Ou seja, o espaço sagrado de matriz africana pode ser compreendido como um lugar de manutenção e resistência dos pressupostos civilizatórios de negros e negras que tiveram seus direitos mais básicos ceifados historicamente para que se estabelecesse a lógica do capital no território brasileiro.
O reconhecimento estatal e social desses espaços é ínfimo, tanto é assim que diferentemente do que ocorre com as tradições judaicas e islâmicas, que tem seus códigos respeitados e protegidos pelo Estado e pelos sistemas jurídicos, as tradições de matriz africana ainda estão marginalizadas, vulnerabilizadas e constantemente perseguidas e criminalizadas. São continuidades das lógicas vigentes no período de colonização e escravização; reformuladas, mas com resultados bastante semelhantes.
Outro aspecto relevante para esse debate é que, para muitas concepções de matriz africana, animais, vegetais e minerais integram um todo, são forças vivas que se conectam e não estão hierarquizadas. O valor de uma erva é o mesmo de um bode, o valor da água que corre nos rios é o mesmo das pedras que o circundam. Todos esses elementos são vivos e valorizados, apresentam funções relevantes no cotidiano desses povos, e são sagrados. Logo, a alimentação que é oriunda destes elementos é também sagrada. Principalmente porque ela implica na “suspensão da vida de uns para a continuidade da vida de outros” (NASCIMENTO, 2015). Sendo assim, aqueles que se alimentam exclusivamente de folhas, frutos e grãos, também suspendem uma vida para que a sua continue. A diferença é que os discursos que emanam da defesa da vida animal defendem uma alimentação em que aqueles seres que integram o que as ciências denominam como “reino animal” não tenham suas vidas suspensas para a alimentação de outrem. Contudo, não refletem sobre a suspensão de outras vidas para que possam se alimentar exclusivamente de alimentos oriundos do que a ciência designa como “reino vegetal”.
A alimentação sagrada compreendida na vivência de matriz africana pressupõe uma responsabilidade coletiva com todo o procedimento que levará a alimentação. Inclusive com a morte. Comer é um ato sagrado. (Para saber mais sobre isso, clique aqui.)
Tendo em vista esse cenário, o qual tentei resumir de forma sintética e o mais didática possível, é possível estabelecer alguns pontos que merecem uma apreciação comprometida para que se possa construir o mínimo de diálogo no que diz respeito às polêmicas que são criadas pelas contradições oriundas do tal de capitalismo.
A industria alimentícia como um todo degrada o ambiente, a vida animal e visa exclusivamente o lucro. Não há intencionalidade sagrada e nem ao menos de promover o direito constitucional à alimentação. O leite de soja produzido pela Unilever com ABSOLUTA CERTEZA é mais nocivo à vida animal do que as práticas de matriz africana. A monocultura de soja, sem a menor dúvida, degrada mais o meio ambiente e causa danos e sofrimentos aos animais de forma cruel.
Ainda assim, ainda cientes desse diagnóstico, são as tradições religiosas de matriz africana que tem suas práticas criminalizadas, ridicularizadas e violentadas.
Não é raro ver, em momentos de acirramento de tensões entre os adeptos dos pressupostos civilizatórios de matriz africana e as organizações de defesa animal — como o que ocorre quando há alguma proposição de lei que pretenda criminalizar as práticas dessas tradições — um discurso de ódio que tem o mesmo conteúdo do proselitismo religioso neopentecostal. A diferença, nesse caso, é que ele se camufla em nuances de intelectualidade e superioridade.
Por outro lado, os abates sagrados kosher e hallal, que também são religiosos, jamais são afetados por proposições legislativas. E aí reside parte do classismo e do racismo. O que difere as práticas das tradições religiosas de matriz africana dessas outras, na lógica desses defensores, se não o poderio econômico e financeiro daqueles que as comungam? Se não a origem das práticas?
O Brasil apresenta uma anti-negritude tão elaborada que até o óbvio se torna complexo.
Por Winnnie Bueno
Imagem destacada: Centro Pai João de Angola
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