2016: o ano em que descobri que amava mulheres

Este texto é sobre o esquema perverso do desamor pelas mulheres.

Sua mãe foi criada dentro de um sistema que escravizava as mulheres. Esse sistema dizia para ela que mulheres têm menos valor, devem ser agradáveis, adoráveis, e belas, devem se casar, parir, se calar, julgar, aguentar, adoecer e morrer. Sua mãe te ensinou a ser uma escrava dos homens e uma algoz das mulheres.

A docilidade e o respeito direcionamos aos homens. O silenciamento e o julgamento, para as mulheres.

Sua mãe te ensinou a respeitar os homens e a desqualificar mulheres.
Sua mãe te ensinou a admirar o homens e a desvalorizar a mulher.
Sua mãe te ensinou a trabalhar gratuitamente para um homem e a explorar a doméstica mulher da sua casa.
Sua mãe te ensinou a confiar em homens e a desconfiar de mulheres.
Sua mãe te bateu quando você errou e foi permissiva com seu irmão.
Sua mãe fez você limpar a casa, limpar a boca e a cara, e limpar o chão do seu pai e do seu irmão.

Não sei a sua, mas minha mãe morreu por isso. Por ser algoz de si mesma, minha mãe me ensinou a amar os homens e a esquecer de mim.

E o motivo pelo qual elas fizeram isso foi o mesmo para todas: somente elas foram responsáveis por nossa educação.

Enquanto elas carregavam o fardo de ter que se responsabilizar por todas as tarefas domésticas, ainda a elas foi delegada a função de — sozinhas — criarem seus filhos, todos quantos fossem necessários, tudo isso perdendo sua identidade quanto indivíduo, sendo esquecida no reduto da casa.

Aos nossos pais foi dada a honra de ter sua identidade reconhecida no mercado de trabalho. Não era deles a responsabilidade pela nossa criação — e ainda assim ficaram com as boas lembranças dos seus filhos.

Aos nossos homens foram dedicados os tempos bons que passavam com os filhos, enquanto a mulher — sozinha — ficava porta adentro daquele reduto familiar, fazendo atividades que sequer tinham importância.

Elas surtaram, choraram, morreram. E ainda assim foram culpabilizadas por todos os nossos traumas.

Temos raiva das mulheres que nos criaram. O que não percebemos é que todas essas más lembranças tiveram elementos em comum: sua mãe sendo protagonista de momentos dolorosos e seu pai que não estava lá.

Sua mãe aqui no seu mundo, e seu pai lá no mundo dele.

Para que você estivesse aqui hoje, alguém sacrificou uma parte considerável da sua própria vida, porque assim é ainda hoje com as mulheres. E nada disso foi uma escolha, isso foi a reprodução de um sistema estruturado de forma tal que nos faz acreditar que temos escolhas, quando na verdade não temos.

Se isso não é verdade se pergunte:

Você pode vestir a roupa que quer? Quantas vezes você não teve medo de ficar sozinha sem um parceiro por medo de ser julgada como uma mulher incompleta? Não ter filho é uma opção fácil de ser feita? Quantos dias por ano você se sente menos completa por não ter feito a opção de ter uma criança? Se tem filhos, quantas vezes não se sentiu culpada por ter que deixá-los para trabalhar? Quantas vezes seu trabalho foi preterido por ser a menor renda da casa? Quantas vezes você foi julgada impaciente, negligente, insuficiente no seu papel de mãe? Pelos outros e por você?

A lista é infinita.

Sua mãe te ensinou a ser a algoz dela, e ela com certeza foi a algoz de sua avó.

E com essa roda de feridas abertas direcionamos nosso julgamento de culpa para o lugar errado e nos mantemos presas nesse sistema perverso e sem fim.

Ter escolhas no nosso século é perceber que você faz parte de um sistema que te aprisiona e que cada vez que direciona seu julgamento a uma mulher retroalimenta ainda mais tudo isso.

Ter escolhas é perceber que as mulheres de sua criação também fizeram parte desse sistema, e assim libertá-las dessa culpa e, por consequência, se libertar também. É se sentir livre para parar de julgar as mulheres, incluindo sua conduta. e direcionar o julgamento para o lugar correto: julgar a crueldade desse sistema chamado patriarcado, que criou mulheres aprisionadas e homens soberanos e donos das nossas vontades.

Quando eu direcionei o meu olhar com amor a todas essas mulheres que fizeram parte da minha educação, compreendendo que elas fizeram tudo que era possível, e que nada do que carregava delas era fruto delas somente mas também de um sistema que as manipulou, eu aprendi a amar a mim.

2016 foi o ano que aprendi a amar e a libertar mulheres, e isso para mim já bastou minha estadia nessa terra, isso me rendeu a minha liberdade, conquistada todos os dias.

Que em 2017 eu aprenda com as mulheres da minha vida, as admire, as compreenda, as acolha, as ame, e que juntas tenhamos voz ainda cedo para dizer aos filhos de nossa pátria (ou seria mátria?) que nós mulheres ainda sobrevivemos porque dentro de nós mora a resistência.

A força e a coragem de manter essa roda da vida girando mesmo diante da violência e da opressão, mas que isso não mais nos custará nossa individualidade.

Seguimos juntas!
#niunamenos

Por Milene Mizuta
Imagem destacada: The Graphics Fairy

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