O que se aprende lendo “discussões” sobre a legalização do aborto
Um brevíssimo resumo do que se aprende lendo “discussões” sobre a legalização do aborto:
– Que “matar um anjo, um ser inocente” é o mais hediondo dos crimes, mas matar uma mulher adulta, com história e consciência é perfeitamente razoável se ela opta por abortar;
= Disso derivamos que o merecimento da morte está vinculado a uma inocência idílica que os fetos e as crianças acessam, e da qual a mulher “aborteira” é privada no momento em que consente ao sexo (“não quis fazer? Agora aguenta”);
= Que o sexo, portanto, é um prazer interditado às mulheres e pelo qual elas serão punidas se ousarem praticá-lo;
= Que o ser inocente, ao invés de uma bênção, é uma forma de castigo à mulher sexualmente ativa (“não quis fazer? Agora aguenta”);
= Que, no fundo, muitas pessoas nem desconfiam de que odeiam demais mulheres e crianças (por “condenarem” as mulheres a tê-las) para valorizarem a vida;
= Que as mulheres não são Deus para decidirem quem vive e quem morre, mas existem pessoas que também não são Deus e aparentemente têm direito de condená-las à morte;
= Que essas mesmas pessoas, mais tarde, vêm a demandar a morte de crianças, uma vez que nasceram, mas não são inocentes (os “anjos” de facto viram “anjos” irônicos, no sentido pejorativo);
= Que matar nunca é um problema, mas quem se mata e quando;
= Que para preservar uma expectativa, é preferível (e desejável) matar uma realidade;
– Que mulheres que abortam “não têm Deus no coração”;
= Que muitas pessoas vivem em um mundo onde todos acreditam em (um) Deus;
= Que o mundo dessas pessoas não têm porta de saída e as encerra completamente em si mesmas;
= Que o Deus dessas pessoas supostamente criou as mulheres que abortam, mas jamais habitaria seus corações ou estenderia Sua Mão a elas (criou para penalizar? Sádico deste jeito, não seria o Diabo?);
– Que mulheres que abortam são doentes mentais e seres menos humanos;
= Isto é, que a maternidade é uma espécie de atestado de saúde mental e humanidade feminina;
= Que o aborto necessariamente advém de um lapso mental aleatório, não de um contexto e condições específicas;
= Que o “instinto materno” é um mito talhado em pedra (ainda que, se formos mesmo recorrer à Natureza, as fêmeas de muitas espécies abandonem ou matem os próprios filhotes por razões diversas);
= Que a desumanidade e a loucura se representam mais por um aborto do que por mortes trágicas de crianças e jovens cuja vida inteira foi marcada por violência e desamparo por toda uma sociedade;
– Que o pai do feto é muito, muito raramente mencionado nos sermões antiaborto;
= Que, quando os homens abandonam suas parceiras ou suas famílias durante ou após a gravidez, as mulheres é que não souberem escolher com quem teriam filhos;
= Que, quando os homens se recusam a usar camisinha ou manipulam suas parceiras a fazer sexo sem proteção, as mulheres é que se relacionavam com os homens errados;
= Logo, que o homem possui pouca ou nenhuma responsabilidade pelos fetos que ajuda a criar e pela contracepção;
– Que muitas pessoas que são a favor do aborto em caso de estupro não admitem de jeito nenhum um aborto em qualquer outra circunstância;
= Que para estas pessoas, os fetos gerados a partir de um estupro e os fetos gerados a partir do sexo consensual são fundamentalmente diferentes, e, por isso, uns podem ser mortos e os outros, não;
= Que, mais uma vez, matar nunca é o problema. O problema é quem matar, segundo a minha régua pessoal.
Por Stefanie Cirne
Imagem destacada: deviant art
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