Pontos de vista
Uma mesma história de violência contra a mulher. Duas lembranças distintas. Amanda e Lucas, irmãos, relatam.
Relato Amanda:
Quando eu tinha uns 10 anos, estávamos voltando para casa à noitinha quando meus pais pararam o carro no meio da rua para socorrer uma mulher e a filha, que devia ter a minha idade, ambas ensanguentadas. Estávamos eu e meu irmão, mas eles não hesitaram. Minha mãe pulou para trás com a gente e a moça entrou na frente, colocando a menina no colo. No caminho para o hospital, meu pai perguntou o que havia acontecido e a mulher chorando contou que havia chegado em casa do trabalho e encontrado o marido estuprando a filha. Ela estava desesperada, desnorteada, decepcionada. A menina com cabelo cacheado, em estado de choque, nem se mexia. Eu lembro até hoje da expressão dela, envergonhada, humilhada.
Não sei se meu irmão traz isso na memória, meu pai já esqueceu. Eu e minha mãe não.
Além do exemplo de caridade e compaixão que nossos pais sempre nos deram, e que hoje faz com que eu sobreviva alheia à cultura do medo, levei outra lição dessa história triste. A mãe e a filha negras e pobres, talvez tenham sido as primeiras vítimas de violência doméstica que conheci, mas infelizmente não foram as últimas.
No meio de uma dinâmica de grupo de cinco pessoas esses dias, ouvi relatos de situações de abuso de três delas. Todas brancas, de família de classe média ou média-alta. E olha que eu não trabalho com assistência social e aquela dinâmica era um exercício profissional para empreendedores, mas saiu! Quando uma delas justificou uma limitação profissional expondo o assédio, as outras se sentiram à vontade para confortá-la com suas próprias histórias. Foi a coisa mais linda da vida.
Semana passada, só falavam na menininha do Master Chef. Ontem, o ENEM trouxe o tema relacionado para a redação e alguns deputados acusaram… Ai, você já sabe, nem quero repetir. Não quero falar desses caras, nem daqueles que assediam a menina da tv.
Quero parabenizar o ENEM, dizer que eu entendi porque algumas pessoas estão tão desesperadas com esse movimento lindo que tá rolando por aí no mundo todo. Se sentir representada é BOM PRA CARALHO! A gente se sente poderosa, foda, acima de qualquer coisa, né? Quando essa sensação de poder é institucionalizada então, NOSSA! Amei! E não vou mais sossegar enquanto não tiver pílulas diárias dessa droga.
Vai ter mulher sim! Vão se acostumando.
Assim como minha Mãe, ela é uma mulher.
Elas não esqueceram dessa história.
Eu e meu Pai somos homens.
Além da sensação de desespero e a de que algo urgente precisava ser feito naquele momento por aquelas duas pessoas ensanguentadas, Mãe e Filha, nenhum outro registro específico do evento ficou gravado na minha memória e nem na dele.
Nós esquecemos dessa história.
O texto da minha irmã me fez pensar.
Me fez pensar no meu privilégio e como ele me cegou, já naquela idade tenra, e como ele ainda me cega todos os dias.
Eu continuo esquecendo histórias.
A gravidade do esquecer histórias é a de que quem as esquece não as conta. E se não as conta elas não existem.
Viver num mundo mais igual significa contar todas as histórias.
Significa que as histórias sejam contadas por todxs.
E mais importantemente, que sejam ouvidas e lembradas.
Nunca esquecidas.
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