Como é ser mulher em um país africano?
Saí de casa ontem pra pegar o ônibus e no caminho dois caras começaram a barrar minha passagem, dizendo “hey bonita, por que não fala com a gente, hein linda?”. Olhei pra eles com cara de quem já estava esgotada disso, e consegui seguir em frente. Nisso, um senhor de idade, que tinha visto a cena, me deu um bom dia muito simpático com um olhar que me transmitiu calma.
Entrei no ônibus e torci pra que nenhum homem sentasse do meu lado e ficasse falando asneiras ou me comprimindo contra a janela, como já aconteceu.
Por sorte, sentou uma mulher. É um alívio que não sei descrever.
No caminho fiquei pensando naquele senhor. Será que sua mulher ou filhas já sofreram algum tipo de violência sexual? Provavelmente.
A maioria das mulheres com quem convivo aqui já sofreu violência sexual e tortura. Infelizmente, o estupro é uma poderosa arma de guerra. E por mais que não a transmitam no comportamento, a dor que carregam se revela no olhar, não só delas como de seus maridos; e não só aqui, mas também entre pessoas que conheci e com quem convivi no Brasil.
Aqui é socialmente aceito que um homem tenha relações fora do casamento, principalmente se a mulher não for fértil. Mas a mulher não pode nem pensar nisso, pois, há a uma percepção generalizada de que mulher não sente tesão e serve primordialmente para gerar filhos. Muitos filhos, devo acrescentar. É cultural dos congoleses ter mais de cinco filhos, não importando muito as condições financeiras.
Nesses quase três meses de Quênia, já ouvi coisas como:
- “Por que não é a Munike que está lavando os tecidos? Isso é coisa para uma mulher fazer.”
- “Se teu marido mandar tu tirar as tuas tatuagens, vais fazer o que?”
- “Mas a bíblia diz que o homem é superior e que você veio de um homem, e, se está na bíblia, é correto.”
- “Já não é hora de você casar e ter filhos?”
- “Como vocês tem coragem de colocar uma mulher na presidência do seu país? E ela não é nem casada?”
Respondo perguntando se eles têm consciência de que estão falando com uma mulher, e questiono qual a diferença entre nós. Por que meu gênero me torna inferior? Por que dá abertura para que me cantem na rua, no ônibus? Qual o problema de eu ser solteira aos 25 anos? E tento me fazer entender dizendo que nem todo mundo segue o mesmo livro, acredita no mesmo Deus, pensa da mesma forma.
Muitos amigos dizem que é para eu me cuidar, ficar quieta, fingir que não ouço, porque aqui é perigoso. Ora, qualquer lugar é perigoso.
Sinto ter abertura para falar sobre isso com meus amigos refugiados – os mesmos que tiveram as esposas violentadas, mas ainda pensam que, por eu ser mulher, não tenho os mesmos direitos deles. Temos conversas saudáveis, onde todos param para pensar. Alguns riem com o ar de que minhas ideias são muito revolucionárias. Eu rio junto, para quebrar o gelo, e ofereço: “mas não é, meninos? A gente é igual! A diferença é que ainda não raspei meu cabelo como o de vocês.”
Então me perguntam “como é ser mulher em um país africano?”. É como ser mulher em qualquer lugar do mundo. Não é fácil.
Por Munike Zanette Ávila, que trabalha com refugiados congoleses no Quênia.
Ilustração aqui.
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