Desescolarização não é só tirar da escola
Em dezembro de 2016, tirei o meu filho de 8 anos da escola, e não botei o meu caçula de 3 anos na pré-escola. Não foi uma decisão tomada de rompante. Foram dois anos de debate intenso com meu companheiro e com meu filho a respeito do que nós precisávamos na nossa vida familiar. Não tirei da escola para ele ficar em casa “sem fazer nada”.
Acontece que nos mudamos para um novo país. Quando decidimos nos mudar, colocamos esse projeto na pauta de forma concreta. Eu me achava mais do que qualificada para “educar”, “ensinar” meus filhos os saberes que eles estariam aprendendo numa escola. Agora, tenho certeza de que sou qualificada para a tarefa.
No entanto, ainda tenho que trabalhar mais em relação a uma área específica. Uma área que, e eu não tinha ideia disso, seria uma questão. Meus filhos não frequentam mais escola. Eles estão comigo o tempo todo. E eu não sabia que teria de aprender a viver com eles.
Eu achava que já sabia viver com eles. E descubro que viver com filhos é mais do que trabalhar para pagar o aluguel da casa onde eles dormem, comprar comida, alimentar. Estou descobrindo que desescolarizar é mais do que tirar da escola, deixar de levar na escola, e passar a ensinar em casa. Desescolarizar é conviver com os filhos. E isso é algo que eu não sabia que seria tão prazeroso.
Eu me preparei de forma didática para conviver com meus filhos. Eu fiz planejamento de aulas, muito porque eu sou professora primária formada, antes de ser jornalista formada, muito porque eu não sabia ou compreendia de forma plena que a vida é um aprendizado. Que o aprendizado pode vir em qualquer momento do dia. Que tudo a nossa volta serve de aprendizado.
Escolhi ficar num condomínio com parquinho para que meus filhos pudessem conviver em sociedade, “normalmente”. Estamos aprendendo a viver em sociedade juntos, a escolher quando queremos socializar, a escolher o que nos faz sentir melhor e o que queremos aprender.
Eu ainda ofereço “conhecimentos” a eles todos os dias. As perguntas vem, a gente responde, mostra vídeos online, mostra livros, dá lápis e papel na mão e pergunta: quer fazer isso ou aquilo (escrever, desenhar, ler, ver, experimentar)? E eles querem.
Existem núcleos familiares que estão confortáveis com a escola. E mesmo vendo determinados problemas, não conseguem visualizar a vida sem os filhos estarem na escola. Para muita gente, filho na escola significa tempo para que possam ser elas próprias. Para focar na carreira. Para relaxar.
Eu achei que seria uma dessas pessoas. Nunca tinha vislumbrado a vida convivendo com filhos dessa forma tão intensa, tão integral. Alguns diriam até tão submissa. “Você não tem mais vida própria”, me dizem. “Você só cuida dos filhos e não investe na sua carreira, vida social”.
Bem… Não consigo acreditar nisso.
Eu sempre fiz amizades com outras pessoas quando levava meus filhos aos parquinhos e aulinhas esportivas porque as crianças simplesmente olham umas para as outras e se propõem a brincar juntas, então os pais se aproximam e começam a conversar.
Agora não é diferente. Eu ainda nem falo a língua local, mas já fizemos amizades com três famílias do nosso condomínio em menos de um mês, mais as moças do supermercado mais próximo e os funcionários do café mais próximo. Já sabem os nossos nomes, já perguntam como foi nosso dia. As crianças do condomínio arriscam seu inglês para se aproximar dos meus filhos, e os meus filhos arriscam falar português para serem compreendidas por falantes de espanhol e se aproximar delas.
Socialização “natural” (seria “orgânica”?) ganhando de dez a zero, mostrando que a escola não é o único lugar onde crianças podem e devem socializar.
A aproximação acontece. O aprendizado acontece. Ofereço conhecimentos, eles olham curiosos e absorvem o que querem, quando querem. Deixo conhecimento espalhado pelas paredes da casa: “cartazes” com os nomes das frutas, vegetais e comidas preferidas escritos em três línguas. Levo no cinema, conversamos sobre o conteúdo do filme, como aquilo se aplica a nossa vida.
Escrevemos cartas para os novos amigos e deixamos na caixa de correio deles. Pegamos a letra de uma música favorita e lemos junto com a canção sendo tocada no YouTube. Lemos histórias na hora de dormir. Criamos histórias juntos.
Eu achava que ia ter de ser a professora deles. Mas estamos apenas vivendo juntos. Convivendo, aprendendo, progredindo – mesmo em termos acadêmicos, embora isso não seja o foco da desescolarização na nossa família. Viver pode ser mais bonito do que pintam. Aprender pode ser natural. Ensinar pode não ser a única forma de passar conhecimento.
Acredito haver algo intrinsecamente feminista em desescolarizar. Dão-se ainda mais empregos a homens do que a mulheres. Homens ainda são mais valorizados do que mulheres no mercado de trabalho. Mesmo se forem trabalhadores autônomos.
Homens ainda são considerados mais competentes que mulheres, por N razões, como a real opressão que se fazem com meninas mundo afora, negando educação formal a elas (olá, Malala), e mesmo que elas tenham acesso a educação, ao conhecimento, as fêmeas humanas ainda são vistas como menos competentes e capazes.
Vide o experimento onde pediram a alunos para fazerem um teste de matemática, e metade dos adolescentes podia assinar seu nome na folha. Quando os examinadores sabiam o sexo de quem fez a prova, as meninas obtinham notas mais baixas do que a nota mais baixa dos meninos. Mas quando corrigiam testes anônimos, todas as meninas tiraram notas mais altas que as notas mais altas dos meninos.
Portanto, vale dizer que, embora a desescolarização envolva toda a família, e que os pais participem extrema e ativamente na aquisição de conhecimento, muitas vezes as mães tomam a frente do processo por estarem, circunstancialmente, mais disponíveis (e não por serem, naturalmente, disponíveis).
Deixar ou permitir ou proporcionar que a educação seja dirigida por mulheres é vanguardista. Não acredita? Pense em como toda a educação formal já é dirigida por homens mundo afora. A maioria dos educadores infantis são mulheres? São. Mas vá subindo a hierarquia para descobrir que quem dita, limita, escolhe, promulga o que é ensinado/aprendido é, na verdade, um grupo de homens. Mentira minha? Questione. Só questione quem está nos cargos de secretário de educação da sua cidade, estado, país.
Esse caminho está me fazendo sentir valorizada como ser humano. Essa valorização vem da convivência com as crianças no dia a dia, em uma vida em que eu, na falta de escolha no mercado de trabalho, acabei escolhendo um caminho que achei possível trilhar também, sem me preocupar com que a sociedade podia pensar de mim como, por exemplo, que eu seria preguiçosa por não querer acordar de manhã cedo para levar filho na escola.
Continuamos acordando super cedo. E dormindo cedo também, porque a vida, mesmo sem escola nem trabalho formal cinco dias na semana, cansa. Porque brincar e aprender brincando também satisfaz.
Por Andréia Nobre
Imagem destacada: sheknows.com – de uma coluna (em inglês) propondo o argumento oposto
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