Quando é que vamos ter a lei de identidade de gênero aprovada?

Vou precisar escrever esse texto, mais como um desabafo. Nós, enquanto movimento de pessoas trans, falamos como é um absurdo termos nossa cidadania vinculada a apresentação de laudos médicos e psiquiátricos. Apontamos como isso é violento e arbitrário, já que o direito jurídico ao próprio nome não deveria estar vinculado a apresentação de laudos.

E aliás, quando falamos de laudo, não é qualquer laudo, é um laudo pretensamente “confiável”, que passou pelo crivo da produção de uma verdade sobre o sujeito trans. Os dois anos de exigência de acompanhamento é uma das formas como essa verdade sobre a subjetividade trans emerge.

Os profissionais psis acreditam que todo este controle burocrático de aparição desta verdade da subjetividade trans regulamentada por normas seria do campo da ética.

Confundem burocracia e regulamentos com a ética. Acham que se existe uma exigência para uma produção de verdade sobre o laudo, e uma das exigências é o acompanhamento de 2 anos, eles depreendem automaticamente que se trata de algo fruto de uma ética, de um estudo condizente e neutro sobre as subjetividades trans.

Se dizem que é preciso 2 anos para só então uma pessoa trans ser laudada como trans pelo discurso da verdade é porque é correto, pois ético, pois só poderia ser fruto da ética.

Mas é possível vivermos em stand-by durante 2 anos? É uma pergunta retórica esta que eu fiz. Para as pessoas trans, demandamos acesso a direitos para ontem, não para daqui há 2 anos.

O que psicólogos cisgêneros apreendem da nossa denúncia, desta realidade de desumanização do laudo, exclusão de direitos de pessoas trans? Até que ponto esses profissionais psis podem ser empáticos? Até onde a burocracia aperta. Ou melhor, o desejo por burocracia, que o mesmo que o desejo por verdade, o mesmo desejo por separar o “joio do trigo”, ou seja, separar quem é trans de “verdade” e quem é de “mentira”. Até quando eles enxergarem qualquer ameaça ao exercício do seus cargos, até onde eles enxergarem uma instabilidade para o exercício destes cargos. Este é o limite.

Até onde a burocracia sem sentido aperta, a mesma burocracia desumanizante para pessoas trans. A contradição entre esse desejo por burocracia e a cidadania trans não é resolvida. Eles estão muito mais interessados em não terem seus registros “caçados” (mesmo que de fato esse medo seja bastante infundado), em não sofrerem qualquer tipo de problema burocrático, do que se manifestarem contra esta realidade transfóbica, do que se exercerem empatia conosco, do que questionarem o próprio estatuto da verdade que um laudo atestaria frente ao jurídico.

Para alguns psicólogos cisgêneros, é mais importante seguir regras burocráticas de 2 anos para realizar um laudo do que criticarem essa exigência.

Para alguns psicólogos cisgêneros, é mais importante seguir regras burocráticas de 2 anos para realizar um laudo do que criticarem essa exigência. O interesse de classe, e classe aqui como o interesse do respeito a uma burocracia sem sentido de uma classe profissional. Seguir a burocracia, por apena segui-la, para se eximir de qualquer enfado burocrático, é mais importante do que a própria vida concreta de pessoas trans. O desejo desta burocracia no campo psi vêm do campo jurídico e este desejo por veridição não é resolvido sem a desconsideração do reconhecimento da humanidade das pessoas trans.

Pessoas cis veem questões de pessoas trans como algo perigoso, como uma ameaça.

Pessoas cis veem questões de pessoas trans como algo perigoso, sempre como uma ameaça. Pessoas trans são uma ameaça ao exercício da profissão de psicologia, porque demandamos esses laudos para podermos sobreviver; insistimos em viver e isso atrapalha a estrutura burocrática entre os campos do jurídico e do psi; e esses psicólogos se sentem incomodados com essa demanda, eles se sentem incomodados em terem que assumir essa posição sobre-determinada pela demanda jurídica. Seria muito mais fácil para os psis que pessoas trans simplesmente não existissem, seria uma dor de cabecinha a menos para eles. Seria mais fácil também para os juízes.

Nós pessoas trans somos as pessoas mais enfadonhas em exigirmos um documento para esses profissionais para que nós possamos sermos cidadãos deste país – mesmo que de forma precária. Nós somos um enfadonho para a lei, para o jurídico, para profissionais, para pesquisadores, para médicos e para psicólogos. Nós incomodamos esses profissionais por existirmos em sociedade, nós incomodamos com nossas demandas por existência e reconhecimento.

Incomodamos mais ainda quando denunciamos este incômodo, quando denunciamos as relações de poder, quando ousamos tensionar essas relações, quando ousamos questionar as verdades que se produzem no discurso jurídico e psi sobre nossas subjetividades.

O jurídico demanda a apresentação de “provas” de autenticidade, de laudos que atestem uma transexualidade verdadeira. Não basta qualquer parecer técnico baseado no respeito por direitos humanos e a auto determinação do gênero, isso é ainda pouco para o jurídico, o jurídico tem fome da verdade verdadeira sobre a transexualidade patológica.

Os profissionais psis se sentem ameaçados a ocuparem essa posição, justamente por muitas vezes (pra não dizer todas) se depararem com sujeitos trans que existem concretamente, e não uma abstração de um sujeito ideal, portador de uma transexualidade verdadeira, de uma patologia cristalina.

Os sujeitos trans reais são imprecisos, duvidosos. Não suficientemente patológicos, talvez. O incômodo do profissional psi emerge deste sujeito trans ambíguo, pois a confecção do laudo no seu dispositivo de verdade se encontra ameaçada. Enquanto isso, enquanto toda essa dinâmica que regula subjetividades se estrutura e se concretiza institucionalmente, são as pessoas trans que irão continuar vivendo na sub-cidadania. São as pessoas trans mais excluídas que irão continuar excluídas do acesso a direitos, a trabalho, educação, saúde.

Quando é que vamos ter a lei de identidade de gênero aprovada?

Ao mesmo tempo em que esses profissionais se sentem incomodados com pessoas trans, eles se sentem muito a vontade no exercício deste poder, no exercício deste poder que determina a verdade sobre a subjetividade trans. O que incomoda esses profissionais de fato não é o poder que eles detêm sobre nossas vidas, são as vozes trans que denunciam essas relações de poder, que denunciam a noção de uma transexualidade “falsa”.

A nós pessoas trans nunca foi dada a prerrogativa de “não existir”. Nós resistimos.

Por Bia Pagliarini Bagagli
Imagem destacada: Harvard University

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