Mulé é forte, né mulé?
O dia começou quente aqui no semiárido. O sol raiou cedinho, e logo meu quarto foi invadido pela luminosidade e pelo calor.
Depois do primeiro café, seguiu-se a primeira história do dia. No interior é assim: todo dia tem uma história nova, toda história tem gente nova, toda a gente tem sentimento e todo sentimento merece atenção. Parei e me concentrei para ouvir.
Era pra ser uma história simples, curta e feliz. Uma amiga tornou-se tia ontem. Ganhou uma sobrinha saudável e gorducha. A irmã sofreu, gritou, suou e virou mãe. “Mulé é forte, né mulé?”, falou puxando bastante seu sotaque do norte do Ceará.
Respondi que sim com a cabeça e com um sorriso, dando os parabéns. Foi então que ela baixou os olhos e seguiu falando, sem nem me dar chance de me preparar…
Mulé, mas além de minha irmã tinha muita gente lá no hospital ontem, sabe? Tinha até uma menina bem novinha. 13 anos. Treze, Carol! Tava em trabalho de parto há 4 dias, lá no Camocim. Mandaram ela pra cá porque tem mais estrutura, mas os médicos nem olhavam pra bichinha. Era puro bucho, precisava ver. Magrinha, pequenininha, só o buchão. As enfermeiras, mulé, as enfermeiras diziam que na hora que ela fez ela achou bom, e quanto mais essa menina gritava, mais as enfermeiras ignoravam. A bichinha era tão magrinha, Carol. Tava lá, pendurada na mãe. Treze anos, né? Criança de tudo, toda assustada, com dor. Gritava tanto, mulé… Nem sei como fez esse filho. Sei lá se foi estuprada, né? Só sei que olhei pra ela uma hora, depois da madrugada inteirinha dela gritando, já quase de manhã, e os olhinhos tavam revirando. Bichinha tava exausta, Carol. Rasgaram ela toda. Treze anos, minha gente. Toda machucada. Nasceu uma outra menina, mas ela nem soube. Nem sei o que fizeram com a bebê. A mãe tinha 4 reais no bolso, mulé. Acredita? Nóis se juntemo e conseguimo umas roupas. Teve uma mulé que comprou umas fraldas e uma outra deu uns absorventes pra menina. A mãe tava com fome, daí uma mulé do hospital deu um pedaço de rapadura pra ela. Ah, mulé… difícil demais ver uma coisa dessas.
Essa foi a primeira história do dia. E essa história vai me acompanhar por anos.
Essa história aconteceu no dia em que Angela Davis discursava no Brasil, na reitoria de uma universidade federal do Nordeste, escutei uma das histórias mais tristes que o Brasil profundo já me proporcionou.
Se você ainda não entendeu a importância da vida das mulheres, e como as mulheres sofrem desde muito cedo, sugiro conhecer o Brasil de verdade. Aquele que não aparece na TV. Aquele que não dá trégua. Aquele que tem muita gente que ignora.
Esse é o país em que moramos. Esse é o verdadeiro Brasil. É esse país que precisamos salvar. São essas vidas que precisamos resgatar. São essas pessoas que precisam da gente. Essas pessoas. Essas crianças.
Por Carol Campos
Imagem destacada: ICCA Brasil
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