Ainda bem que eu não tenho pai
“Ainda bem que eu não tenho pai”. Esse pensamento me ocorreu algumas vezes quando menina. Vou explicar, talvez você me entenda.
Eu perdi meu pai muito cedo, antes que pudesse formar qualquer memória sobre ele. Pelo que me contam, meu pai era um cara legal. E é tristíssimo pra mim que ele tenha morrido tão jovem. Sempre desejei tê-lo conhecido, existe uma lacuna que só escrevendo obsessivamente eu consigo amenizar.
Mas sempre que pensava no conceito abstrato de “pai”, não no meu próprio pai, quase nunca me soava como algo bom, desejável ou importante. Por exemplo, eu nunca sonhei que minha mãe se casasse novamente, nunca quis que um homem fizesse “papel de pai” pra mim. Simplesmente porque eu tinha medo desse personagem social.
A maioria das crianças que eu conhecida contavam histórias de surras paternas. O pai é o que chegava cansado do trabalho e, ao ouvir uma queixa sobre uma arte que o filho fez, pegava um cinto (“correia”, como se dizia em Patos), um chinelo, uma vara de marmelo e batia na criança.
Os pais batiam pra machucar. Os pais eram figuras que não conversavam com os filhos, que não estavam quase nunca presentes, sua função era agredir e xingar a criança, ou seja, “dar um corretivo”, como se dizia também.
As crianças tinham medo da hora que o pai chegasse, da hora que o pai se aborrecesse.”Vou contar pro seu pai” era ameaça que a mãe ou qualquer pessoa podia fazer a uma criança. Nesta frase estava implícito que o pai daria uma surra. Existiam ainda coisas muito piores e secretas que alguns poucos pais faziam com suas filhas. E eu tinha mais pavor disso do que das surras de deixar vergão.
Então, com toda sinceridade, eu pensava às vezes: “a minha vida, sem pai, é melhor do que a de muitas crianças com pai”. A minha mãe não me batia. Eu era livre, brincava o tempo todo na rua, vivia descalça, gostava de usar “roupa de menino”, gostava de brincar entre os meninos. Isso era uma coisa que eu percebia que várias meninas não podiam fazer com a mesma liberdade que eu: estar com os meninos. O pai não gostava, o pai não deixava. A figura paterna, no meu olhar, era a repressão em pessoa, o não deixar por não deixar, o medo, a violência física.
Claro que eu conhecia exceções, pais amorosos e envolvidos com a educação de filhos e filhas. Mas no geral a ideia em torno de um pai era ou da ausência/indiferença ou da opressão/violência, ou uma combinação das duas coisas.
Cresci e vi que essas exceções aumentaram muito, o que é ótimo. Existe por ai uma nova forma de ser pai, com presença e amor, e sem agressividade. Imagino que muita criança órfã hoje deve pensar “nossa, ter pai deve ser muito bom”.
Outras crianças sem pai, que crescem em contextos tão comuns de violência e abandono, devem olhar em volta e pensar “que beleza que tenho só a minha mãe mesmo”.
Ter pai só é bom se o pai for bom.
Por Sílvia Amélia de Araújo
Imagem destacada: Darth Vader, pai exemplar.
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