Cérebro de homem e cérebro de mulher
As diferenças entre homens e mulheres estão longe de ser limitadas às genitálias. Diferenças biológicas justificariam o tratamento diferente que a sociedade dá a cada gênero. A mulher seria mais emocional, sensível, apta a serviços que envolvem contato humano, a cuidar da casa e dos filhos. O homem por outro lado seria mais racional, agressivo, apto a ciências exatas e à liderança. Tudo justificado como natural, biológico, definitivo e determinado. Por muitos anos a ciência fez eco a estes estereótipos, e acreditava-se que estas diferenças de comportamento eram consequências de diferentes estruturas cerebrais.
O cérebro é uma das principais fontes de interesse da ciência ao longo da história. Este interesse faz sentido. O que quer que aconteça dentro desta máquina incrível, é o que define nosso comportamento e quem somos. Então muitas teorias surgiram, e com elas muitos mitos. A divisão entre o hemisfério esquerdo racional e o direito criativo é um clássico mito, invalidado por qualquer simples estudo de neuroimagem, assim como o uso de apenas 30% da capacidade cerebral. Outro mito muito propagado é o da existência de um cérebro masculino diferente do feminino. Estes mitos têm muito da sua origem na antiga Frenologia.
A Frenologia é uma pseudo-ciência que no século XIX foi amplamente popular. Segundo ela as dimensões da cabeça eram capazes de determinar padrões de comportamento e personalidade. Medindo o crânio se determinava se a pessoa era sonhadora, agressiva, leal, benevolente, dentre muitas outras características. Além disto, a superioridade masculina era “cientificamente comprovada” pelo volume do crânio. Esta “ciência” foi usada para embasar, por exemplo, as atrocidades justificadas pela eugenia, e ilustra bem os perigos do determinismo. Por mais absurda que esta história seja hoje, os mitos que ela originou ainda são repetidos com tom de verdade.
Devemos lembrar que a ciência muitas vezes reflete os costumes e atende aos interesses da época, mas não é esta a sua função. Felizmente hoje a ciência aponta para uma construção de padrões imparciais, quebrando muitos destes preconceitos.
Quando falamos de diferenças entre cérebros de homens e mulheres, muito já evoluiu. Em 2015 um estudo [1] comparando mais de 1400 cérebros com exames de ressonância magnética funcional (fMRI) demonstraram que não existem dois tipos de cérebros. Apenas de 0-8% da população teria características dos extremos caracterizados como cérebro de homem e de mulher. A imensa maioria das pessoas possui cérebros que os autores definem como um mosaico de características particulares. Sendo assim, em termos de população não faz sentido falar de diferenças cerebrais entre os gêneros.
Outro argumento muito usado para justificar a diferença entre homens e mulheres é o do efeito dos hormônios sexuais no cérebro. A teoria seria de que os hormônios andrógenos, em especial a testosterona, afetariam o cérebro de maneira definitiva. Isto justificaria melhores habilidades viso-espaciais e matemáticas de homens e outros preconceitos repetidos com perfume de ciência. Hoje sabemos que não é bem assim. Os nossos níveis hormonais flutuam ao longo da vida, especialmente devido a situações de stress. Tudo isto é refletido em nosso cérebro.
Além disto, nosso cérebro se desenvolve muito além dos nove meses dentro do útero das nossas mães [2]. O córtex pré-frontal, que é associado com respostas sociais, racionalização, atribuição de valor, motivação, tomada de decisão, controle inibitório e muitas outras complexas funções cognitivas, é o último a concluir seu desenvolvimento. Cientistas argumentam que este desenvolvimento estaria plenamente concluído por volta dos 30 anos de idade. Nosso cérebro se reorganiza constantemente de maneira impressionante, o que chamamos de plasticidade. Este processo depende da nossa anatomia, sim, mas depende muito mais de como somos estimulados e das nossas experiências. Então como podemos afirmar que aquelas doses de testosterona no útero determinam como pensamos e nos comportamos? Simplesmente não.
Não existem diferenças inatas em nossos cérebros que justifiquem as supostas diferenças mentais, cognitivas e de comportamento entre homens e mulheres.
Trocando em miúdos, não existem diferenças inatas em nossos cérebros que justifiquem as diferenças mentais, cognitivas e de comportamento entre homens e mulheres. Existem diferenças neurológicas mais marcantes ao compararmos por exemplo grupos com diferentes culturas ou condições sociais.
Mesmo quando falamos de diferenças de comportamento, existem inúmeros estudos confirmando que diferenças cognitivas entre homens e mulheres são em muito determinadas por fatores sociais. Muitas destas diferenças são insignificantes em ambientes com neutralidade de gênero. Um clássico exemplo é o do preconceito que diz que mulheres são piores tarefas matemáticas que homens. Experimentos com mulheres realizando estas tarefas sem qualquer menção de diferenças de performance associadas a gênero trazem resultados iguais ou superiores aos dos homens. Quando este preconceito é apresentado como “priming” (ou seja, antes da tarefa), a performance das mulheres cai significativamente. Isto revela o efeito do preconceito em nossos cérebros. Para leitoras interessadas, recomendo o livro de Cornelia Fine, Delusions of Gender, onde ela apresenta inúmeros destes estudos [3].
O importante aqui é entendermos que não somos diferentes simplesmente porque nascemos mulheres, somos diferentes porque somos criadas e socializadas como mulheres, porque nos tornamos mulheres, fazendo referência à brilhante definição de Simone de Beauvoir. Não existe uma parte do cérebro que determina a identidade feminina, ou a identidade sexual em geral. E ainda que existisse, a biologia certamente não é um limitador.
A ciência mostra que homens e mulheres têm virtualmente capacidades e habilidades semelhantes, que são moldadas ao longo da vida. A prática de qualquer habilidade, a crença e o condicionamento são muito mais relevantes para a performance do que o tamanho de qualquer parte do cérebro. Estas são notícias libertadoras. E quanto mais garantirmos iguais condições para mulheres e homens, mais possibilidades se abrirão. O preconceito é definitivamente o único obstáculo para que as ambos atinjam seus plenos potenciais cognitivos, emocionais e mentais.
No outro lado da balança estão os impactos nocivos do stress em nossos cérebros, e estudos indicam que mulheres que vivem em países mais machistas sofrem muito mais stress e estão mais sujeitas a depressão e suicídio [4]. Por isto é claro que ainda temos um longo caminho a trilhar para reduzir o efeito do machismo nas vidas e cérebros das mulheres, mas certamente a ciência não deve agravar ou justificar este efeito. O que sabemos até agora é que as diferenças entre homens e mulheres são muito mais consequências do que causas.
Diferenças entre homens e mulheres são muito mais consequências do que causas.
Diferentes oportunidades, experiências, níveis de stress e relacionamentos levam a diferentes conexões cerebrais. Não o contrário. Dizer o contrário é muitas vezes uma tentativa mal-intencionada de usar a ciência para justificar padrões sociais, exatamente como vimos na Frenologia.
Não existem pedaços dos nossos cérebros que funcionam como botões que ligam e desligam comportamentos. É inclusive muito difícil dizer que uma área causa algum comportamento. Nosso cérebro funciona como uma complexa rede em constante adaptação e visões simplistas só nos afastam da realidade do seu incrível potencial.
Nosso papel como cientistas é explorar esta complexidade. E por mais que pareça confortável atribuir diferenças a biologia ao invés de discutir suas origens sociais, esta é uma postura irresponsável, que nos aproxima dos perigos do determinismo.
Por fim, é evidente que a ciência tem um longo caminho a trilhar para compreender completamente a mente e o comportamento humano, especialmente no que se trata das nuances de gênero e sexualidade. Mas que seja através de uma ótica libertadora e igualitária. E que nos sirva como ferramenta para a construção de uma sociedade mais saudável, onde rótulos, limitações e preconceitos façam cada vez menos sentido.
Por Aline Dantas – Neurocientista e Neuroeconomista, Pesquisadora na Universidade de Maastricht na Holanda. Imagem destacada: arte sobre desenho de Leonardo da Vinci
Referências
- Joel, D., et al., Sex beyond the genitalia: The human brain mosaic. Proc Natl Acad Sci U S A, 2015. 112(50): p. 15468-73.
- Gazzaniga, M.S. and G.R. Mangun, The cognitive neurosciences. Firth edition. ed. 2014, Cambridge, Massachusetts: The MIT Press. xvi, 1106 pages.
- Fine, C., Delusions of gender : how our minds, society, and neurosexism create difference. 1st ed. 2010, New York: W. W. Norton. xxix, 338 p.
- Kawachi, I. and L.F. Berkman, Social ties and mental health. J Urban Health, 2001. 78(3): p. 458-67.
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