A gravidez de Beyoncé e o feminismo das divas pop
Queen Beyoncé está grávida de gêmeas1 e fez o anúncio para seu séquito como costuma: do nada, e através de elaboradas narrativas visuais. No seu Instagram, uma foto da diva sentada nas próprias pernas, cercada de flores, com as mãos na barriga e um véu sobre a cabeça e o corpo foi postada junto com a declaração de que a família vai crescer em dois membros.
A foto é de um ensaio feito pelo artista multimídia baseado em Los Angeles Awol Erizku, que faz parte do álbum de imagens e poesias I Have Three Hearts (Eu Tenho Três Corações), disponível em beyonce.com. As palavras do álbum são de Warsan Shire, poetisa que também escreveu muitas das letras de Lemonade, disco de 2016, e entre elas e as fotografias e gifs feitos para a ocasião constam mementos pessoais dos Carter-Knowles.
Beyoncé sabe que sua vida pessoal rende narrativas midiáticas, e mantém com pulso firme o controle da produção acerca delas. Sabe também que seu status de celebridade a coloca em diversas posições, de receptáculo de projeções a musa inspiradora, e escolhe focar sua mensagem na última. Histórias sobre eventos de foro íntimo – gravidez, dramas familiares no elevador – são meticulosamente orquestradas pela diva, que ciente de que vamos especular sobre sua vida pessoal, e bem versada no poder simbólico da semiótica, prefere orientar a linguagem com que falamos sobre ela. E tal qual acontece em muito do seu trabalho – bem como no de divas como Madonna, Gaga e Rihanna – a narrativa que envelopa a notícia da gravidez de Beyoncé explora e ressignifica signos do feminino.
A narrativa que envelopa a notícia da gravidez de Beyoncé explora e ressignifica signos do feminino.
Ao longo da História, a maioria das imagens e narrativas sobre mulheres vem sendo controlada por homens. Os significados de muito do que se vê, fala e pensa sobre as mulheres são fornecidos e mantidos por homens, e geralmente são usados em nosso detrimento.
O controle das mulheres é um argumento frequente nos muitos feminismos. Compreendo que a expressão “controle das mulheres” possa soar delirante, ou sugerir que estamos nos vitimizando. Mas ademais de existirem diferenças conceituais entre um delírio e uma perspectiva, não me interessa disputar a existência dos mecanismos de controle que afetam as mulheres, quer chamem-nos de vítimas ou não. O reconhecimento destes mecanismos é um ponto de vista amplamente compartilhado por mulheres no mundo todo, e cada vez mais abordamos essa questão, em muitas linguagens.
Análises minuciosas sobre o fenômeno aparecem nas muitas explorações da vasta produção feminista. Exames sobre mitos de origem, ícones sagrados, arte, narrativas da vida cotidiana, e as produções e reproduções de representações de mulheres sobejam em textos, como nos clássicos O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir, Sejamos Todos Feministas de Chimamanda Ngozi Adichie, Política Sexual de Kate Millet, e A Mística Feminina de Betty Friedan.
Na cultura ocidental, hegemonicamente branca, representações de conceitos como justiça e liberdade são geralmente feitas com corpos femininos – ainda que seja recente, incipiente e tímido o avanço das mulheres na direção de ocupar postos de poder nas instituições que supostamente defendem estes conceitos. Nos livros de história é de homens que mais ouvimos falar, entre uma Anita, uma Olga e uma Princesa Isabel (e o heroísmo da última o feminismo negro desarticula num tapa). Enquanto as estátuas e bustos em praças são dos homens cujos nomes e feitos conhecemos, a bailarina genérica que gira nas caixinhas de joias permanece anônima.
Talvez o famoso cartaz2 das Guerilla Girls (onde a pergunta retórica “As mulheres precisam estar nuas para entrar no Metropolitan Museum?” é complementada com dados: “Menos de 5% dos artistas que constam na seção de arte moderna são mulheres, mas 85% dos nus são de mulheres”) seja a obra mais conhecida do coletivo de artistas feministas por oferecer uma ilustração tão potente desse fenômeno.
Às mulheres cabem representações restritas. A santa ou a puta. Mãe, esposa, filha, todas devotas – e ano passado mesmo houve um retorno forte da exaltação de normas tradicionais de feminilidade quando fomos lembradas que boas mulheres são belas, recatadas e do lar.
Ternura, modéstia e cuidado não são más características, e embora sejam enaltecidas por damas e cavalheiros, elas são esperadas somente das damas. A cultura de massa nos avisa todos os dias que não somos jovens, magras ou belas o suficiente, e tantas histórias no cinema e na TV fazem parecer que a responsabilidade pelo bem estar dos homens é nossa. Estes são mecanismos de controle das mulheres. As narrativas sobre nós são formas de controlar quem somos – e esse controle é tornado bastante explícito ao pensarmos em questões relacionadas à nossa autonomia corporal e sexualidade.
Chamam-nos de loucas e bruxas se não agimos com ternura, modéstia, recato, se não apresentamos subserviência e devoção maternal, marital ou filial. Nosso corpo é constituído como o do pecado – o original e o dos outros. Nosso desejo é lido como inveja, e nosso dissenso como histeria. Esse é o controle sobre nossas histórias. As nossas versões sobre o que acontece com nós mesmas são apagadas, distorcidas, descreditadas.
Muito do que é produzido pelas divas pop sobre mulheres e o feminino questiona e desloca as narrativas tradicionais de controle dos mesmos.
Neste álbum pessoal, Beyoncé, a musa inspiradora, imprime sua interpretação sobre os poderes da maternidade e de ícones femininos. Mulher grávida de gêmeos, ela carrega três corações num mesmo corpo que, sentado sobre flores que oferta à filha, evoca o nascimento de mais do que os bebês que contém. Debaixo d’água ela invoca Iemanjá e, ao lado de um busto de Nefertiti, posa de Vênus. Sozinha a diva faz dela mesma, em pose sacrossanta, um ícone feminino. Poderosa.
Awol Erizku em beyoncé.com
É verdade que nem tudo o que é produzido por mulheres pode ser considerado feminista. Também é verdade que não precisamos concordar acerca do caráter feminista das divas pop, quer como Beyoncé elas declarem sê-lo, ou não. Críticas bem feitas neste sentido empreendem o caráter capitalista da condição de celebridade inerente ao trabalho delas, bem como o amplo e nem sempre reflexivo emprego de signos de um feminino enfatizado3 em suas apresentações para o male gaze4 .
Mas seja em videoclipes, espetáculos, discursos, entrevistas ou em projetos pessoais como o lançamento, digo, a anunciação de uma gravidez, é fundamental constatar que muito do que é produzido pelas divas sobre mulheres e o feminino questiona e desloca as narrativas tradicionais de controle dos mesmos. Primeiramente, porque seus significados são fornecidos, controlados e mantidos por mulheres, mas também porque os sentidos oriundos das produções das divas podem ser – e frequentemente são – usados por mulheres em benefício da categoria.
Rostos de divas pop na Marcha das Mulheres em Washington
Os discursos das divas, passando ou não pelos controles de qualidade das vigilâncias feministas, são carregados de linguagens de empoderamento e emancipação, como atestam muitos dos jargões cunhados por estrelas de toda parte. E para me ater a apenas alguns exemplos, conjuro Beyoncé, Maria Bethânia e Karol Conká, três mamacitas que falam enquanto vagabundos sentam: que não mexam conosco, pois não andamos sós, e estamos mais do que prontas para run the world.
Por Joanna Burigo
Notas
- Feminismo é a ideia radical de que mulheres são seres humanos, portanto “gêmeas” é tão referente à humanidade dos bebês de Beyoncé quanto “gêmeos”. Como não sabemos quem são esses bebês, preferi usar “gêmeas” para salientar o peso de viver sob o jugo de uma sociedade sexista, e aí está incluída a própria gramática.
- Dados de 1985. O cartaz foi atualizado em 2011 e conta 4% e 76%, respectivamente.
- “Feminino enfatizado” é um conceito articulado por R.W. Connell, que encapsula a ideia de que o que consideramos como tradicionalmente feminino é uma construção simbólica, e uma que está sujeita à construção simbólica da masculinidade, que Connell articula como sendo hegemônica.
- “Male gaze”, ou “olhar masculino”, é um termo cunhado por Laura Mulvey que concerne o modo como as artes visuais e a literatura retratam o mundo e as mulheres.
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