O que classifica algo como ‘feminino’, afinal?
Tenho falado muito ultimamente com algumas feministas que se definem como radicais a respeito de estereótipos de gênero. De como as mulheres são socializadas para preferirem determinadas coisas, cores, hábitos, comportamentos – ilustrando o que Simone de Beauvoir propôs: não se nasce mulher, torna-se.
A socialização feminina inclui determinados modos de vestir, agir e até mesmo pensar, que acabam por naturalizar a inferiorização das mulheres em relação aos homens. Somos vistas como sensíveis, irritadas, fracas.
Sensíveis? Talvez, já que as que têm filhos têm que estar atentas aos apelos dos bebês, por exemplo, levando-se em conta que, após a concepção, a mulher pode dar conta de todas as coisas relacionadas à gestação e ao parto sozinha. Inclusive o próprio bebê tem “mecanismos” capazes de transformar a mãe em um sonar ambulante para o atender, como o choro estridente para chamar a atenção, por exemplo… Sensibilidade ajuda a mãe a perceber sinais de perigo para proteger a cria. Pode ser isso o que faz a mulher ser “mais sensível” que o homem?
Irritadas? Bem, há hormônios que regulam os processos de reprodução humana. Mas também há a socialização e a o hábito patriarcal de calar e diminuir as mulheres. Sem direito a voz, quem não ficaria irritada quando suas demandas e necessidades são ignoradas?
Fracas? Só se for em relação a determinadas tarefas em determinadas circunstâncias, e mesmo assim pode ser uma falsa concepção. Imaginemos uma gestação nos tempos das cavernas: devia mesmo ser mais complicado correr atrás da caça e, depois da cria nascer, se esconder em silêncio com um bebê gritando sem espantar a presa. Ou seja, não seria sinal de fraqueza uma grávida ou puérpera deixar de caçar, mas sim uma questão de praticidade. Mulheres sem filhos pequenos e homens teriam melhores condições de caçar.
E essas são características associadas às mulheres de forma, digamos, mais “biológica”.
Além dessas, há o que entendemos como características femininas, tais quais o uso de saias, vestidos, maquiagem. Há todo um conjunto de acessórios que somente as mulheres “podem” usar. Em compensação, a mulher pode usar basicamente tudo o que os homens acham que só os homens podem usar. A cor azul, calças, ternos, e não precisa nem ter sido feito só para mulheres. Eu mesma costumava herdar as calças jeans que haviam sido usadas pelo meu irmão mais velho e que já não lhe serviam. Nos anos 90, ainda dava perfeitamente para comprar calças que poderiam ser usadas por qualquer pessoa. Aliás, se bem me lembro, o uniforme escolar (a calça/short de tergal azul marinho e a camisa branca de abotoamento frontal) eram exatamente o mesmo modelo unissex.
Isso me fez pensar nas ilustrações que restaram de civilizações antigas (romanas, egípcias, por exemplo) e nas comunidades que, de alguma forma, preservam tradições de indumentária que remotam a centenas de anos, como as tribos indígenas nas Américas, alguns países de maioria religiosa muçulmana, alguns países asiáticos (Índia, China). Em comum, os trajes. Não só em comum entre estes exemplos citados, mas surpreendentemente, entre homens e mulheres. As togas romanas, amarradas num ombro só, as saias egípcias, os vestidos e calças usados por ambos os sexos na Ásia, os tapa-sexo das tribos indígenas e africanas (sem dar maior atenção aos seios como faziam os egípcios).
O que me chamou a atenção nisso tudo é justamente o fato de que, quanto mais tradicional é a indumentária, mais “feminina” ela é. Ou será que, na verdade, ela não é feminina? Será que essa indumentária de togas e vestidos e saias é, na verdade, como todo mundo se vestia nos primórdios das civilizações, e que só nos tempos mais modernos é que os homens fizeram questão de se “diferenciarem” das mulheres com roupas como as calças? Pensei em dois pontos a respeito disso: ou as mulheres são muito dóceis e aceitam tudo, isto é, aceitam ser obrigadas a se vestir de saia e vestido, ou os homens é que se “obrigam” a não usar vestidos e saias para não se identificados como mulheres.
Por que os homens fariam tanta questão de não ser identificados como mulheres? Provavelmente para poder exercer um poder sobre elas – isto é o patriarcado. Quando você está junto de um monte de pessoas que têm cabelo comprido usa pintura corporal, vestido, bata, toga, poncho, e não são extremamente diferentes fisicamente no quesito tamanho, devia ser mesmo difícil distinguir entre os gêneros.
Ainda hoje, inclusive, existe uma vestimenta que causa espanto: o kilt escocês, que é uma saia usada pelos homens. É uma vestimenta de guerra. Símbolo dos exércitos, militarismo, a grosso modo. É saia. E é usada por homens nos dias atuais. Por homens brancos e heteros, diga-se de passagem. O que me deixa ainda mais na vontade de desafiar o estereótipo de gênero que determina que meninos não podem usar saias. Aliás, como vivo na Escócia, meus dois meninos já usaram kilts.
O que me leva à conclusão, não fechada ainda, mas estimada, de que: as mulheres, sinceramente, estão sendo bem mais naturais do que os homens quando deixam seu cabelo crescer, quando usam saia, maquiagem, vestidos. Gosto de pensar que estamos preservando a indumentária de tempos antigos, hábitos de épocas em que a diferença entre os sexos fosse, talvez, menos visível.
Por Andreia Nobre
Artigo originalmente publicado em Brasil Post e editado e compartilhado aqui com autorização da autora
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