No Brasil sexo gay choca mais que estupro
Dia 12 de julho de 2016 entrou para a história da mídia brasileira como o dia em que passou pela primeira vez em TV aberta uma cena de sexo gay em Liberdade, Liberdade uma novela da Rede Globo. E esse é um baita motivo para comemoração, em vista de tudo o que evoluiu na teledramaturgia no quesito da diversidade sexual. Longe de ser o ideal, é um grande avanço: de invisíveis, ou apenas representados em papeis cômicos, que servem mais de escárnio do que de comédia propriamente dita, a diversidade sexual pouco a pouco caminha para a visibilidade, pelo menos na teledramaturgia brasileira.
Quem acompanha novelas a algum tempo, há de lembrar que em 1998 a novela Torre de Babel tentou introduzir a diversidade através do casal lésbico Leila (Silvia Pfeiffer) e Rafaela (Christiane Torloni). No entanto, o casal não teve aprovação do público e consequentemente foi morto na famigerada explosão do shopping. Essa foi a solução que o autor da novela, Silvio de Abreu, encontrou na época para poder resolver o problema e manter a audiência.
De lá para cá, vários casais homossexuais foram aos poucos introduzidos nas novelas da Globo, com participações tão tímidas que o relacionamento homossexual era retratado quase que como uma amizade mais profunda, já que os casais não podiam se beijar ou ter qualquer carícia mais ousada. O primeiro beijo homossexual em uma novela, justiça seja feita, foi o beijo lésbico na novela do SBT Amor e Revolução entre Marcela (Luciana Vendramini) e Mariana (Giselle Tigre) em 2011. Mas o beijo que tomou maior repercussão foi o esperado beijo entre Felix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) em Amor à vida em 2014. Longe de ser um beijo mais acalorado como o de Marcela e Mariana, o selinho demorado entre Feliz e Niko causou muito mais polêmica por ser uma novela da Globo e por ter mais visibilidade. Ou será porque duas mulheres se beijando é sexy, é fetiche no imaginário heterossexual masculino, enquanto dois homens se beijando não? Pelo menos na mentalidade machista onde sexo lésbico é para consumo masculino, e não para a própria satisfação sexual das mulheres envolvidas, parece que sim. E fica aquela coisa do como eu vou explicar para o meu filho aqueles dois homens se beijando?
Em contrapartida, a banalização da violência contra a mulher vem desde os tempos mais remotos das novelas. Apenas para citar um exemplo, em 1997 estava no ar a novela A Indomada de Aguinaldo Silva, onde havia o personagem misterioso Cadeirudo que “atacava” as mulheres (numa clara alusão ao estupro) que ousavam sair sozinhas em noites de lua-cheia. Era uma clara tentativa da novela de culpabilizar a vítima de estupro, e ainda ridicularizar ou diminuir a violência sexual. E no final da trama foi revelado que o tal Cadeirudo era Lurdes Maria (Sônia de Paula), uma das beatas da cidade que se vestia de Cadeirudo para assustar as mulheres da cidade e colocá-las sob controle da ordem social da família tradicional. Dá para problematizar isso de tantas formas que nem cabem aqui. Afinal, mulher que sai de casa sozinha a noite está pedindo para ser estuprada. E é isso que consciente ou inconsciente ensinamos aos nossos filhos.
O curioso disso tudo é que o estupro é muito mais aceitável para a família tradicional brasileira numa novela, do que as relações homossexuais. E isso é claramente provado quando no período de um ano tivemos duas cenas de estupro passadas em TV aberta pela teledramaturgia nacional: a primeira, o estupro de Larissa na cracolândia (Grazi Massafera) em Verdades Secretas em 2015; e a segunda, em Ligações Perigosas (minissérie) que foi ao ar em 2016 quando Augusto (Selton Mello) invade o quarto de Cecília (Alice Wegmann) e a força a fazer sexo com ele contra a própria vontade, ou seja, estupra ela. Esse último caso em especial foi romantizado, e por muitos interpretado não como um estupro, mas como um não que se tornou um “sim”.
Sem me estender muito, e tentando aclarar qual o sentido de tais comparações, a pergunta que não quer calar na minha mente é: Como ou por que a nossa sociedade acha muito mais aceitável que seja transmitido em TV aberta cenas de estupro de mulheres, de quaisquer tipos, do que cenas de amor e sexo entre casais homossexuais? A única resposta que vem a minha mente, é o fato que tanto a cultura do estupro como a homofobia estão tão arraigada na nossa sociedade que para mostrar uma cena de sexo consensual entre gays antes é preciso mostrar pelo menos duas vezes cenas de estupro de mulheres. Tudo para satisfazer os anseios da audiência. Me preocupa que pais se preocupem mais em como explicar duas pessoas do mesmo sexo se beijando, do que ensinar respeito pela dignidade alheia. Que sociedade é essa onde demonstrações públicas de amor entre duas pessoas do mesmo sexo ou gênero são proibidas ou evitadas de serem mostradas em rede nacional para não escandalizar ninguém, mas que banaliza o estupro e revitimiza a mulher quantas vezes for necessário. Vale tudo em nome da audiência, inclusive invisibilizar a dor e o sofrimento de quem é vítima de violência sexual ou é marginalizado por sua condição sexual?
De toda forma, parabéns aos atores Caio Blat e Ricardo Pereira, os dois conseguiram trazer muita sensibilidade para a cena de amor entre André e Tolentino, assim como estendo os parabéns à toda a produção. E que venham mais cenas como essa, que o sexo consensual, o amor e a diversidade sexual sejam os protagonistas das próximas produções. E que assuntos como homofobia, transfobia e cultura do estupro sejam tratadas e retratados com o respeito que merecem. Se são as novelas e séries responsáveis por grande parte da educação moral do povo no Brasil, que os autores e produtores tenham a nobreza de ensinar o respeito pela dignidade da pessoa humana e não apenas entreter em nome da audiência. E assim quem sabe um dia consigamos atingir número negativos de crimes de violência sexual e de homofobia…
Por Renata Floriano
Imagem: divulgação
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