Minority Report é aqui

Há pouco mais de um ano 21 pessoas foram presas em São Paulo ao se encontrar para participar de um protesto contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. A operação, bastante noticiada na época, contou com a participação de um militar infiltrado por meio do aplicativo de relacionamentos Tinder, onde este se apresentava como “militante de esquerda”.

Dentre os presos, três eram menores de idade e foram encaminhados para a Fundação Casa. Os demais foram levados para o Departamento Estadual de Investigações Criminais da Polícia Civil (DEIC). Após a audiência de custódia a prisão foi considerada ilegal, e o grupo foi liberado em seguida. Entretanto, no final de agosto a 3ª Vara Criminal de São Paulo decidiu acatar a denúncia do Ministério Público de São Paulo, de 18 pessoas por formação de quadrilha e corrupção de menores.

A primeira audiência do processo, que não foi desmembrado para análise do caso de cada acusado, acontece no dia 22/09/2017. A acusação é baseada nos objetos encontrados com os manifestantes, que portavam telefones celulares e usavam capuzes e vestes escuras. Embora nenhuma ação criminosa tenha sido praticada, a Justiça considerou evidente o perigo para a paz pública, pois “o Estado não quer a existência de agrupamentos organizados e estáveis, prontos a delinquir a qualquer momento”.

Mais informações sobre o caso podem ser encontradas na matéria do The Intercept Brasil, na qual sou uma das fontes a comentar o caso, com base em minha tese de doutorado intitulada Bile Negra – Terrorismo, Câncer e Seus Combates. O que eu defendi na minha tese foi que as políticas anti terroristas historicamente possuem desenvolvimento análogo e semelhante aos métodos de combate ao câncer. Isso está relacionado à concepção de Estado moderno (e que permanece no Estado contemporâneo) como corpo e do inimigo político como câncer.

A medicina da época só concebia um tipo de tratamento para tumores: a extirpação. É de modo semelhante que importantes autores da filosofia política aconselham a lidar com os inimigos do Estado, considerados como prejudiciais à saúde deste corpo artificial. Por estarem entre os delitos considerados mais prejudiciais para a saúde do corpo artificial, os crimes políticos não recebem propriamente penas, mas “atos de hostilidade legítimos praticados pelo Estado contra alguém que, tendo estado previamente na condição de súdito, nega a sua autoridade”, diz Hobbes. Quem o faz não deve ser punido como súdito, mas como inimigo e contra os inimigos é legítimo fazer a guerra.

Cerca de um século após a publicação de O Leviatã, em 1764, Cesare Beccaria, afirmará que os crimes lesa-majestade foram postos na classe dos grandes crimes porque são “funestos à sociedade”. Isso justificaria a aplicação da pena capital para a eliminação dos indivíduos que representassem perigo para a ordem estabelecida. Beccaria concebe os inimigos do Estado de forma semelhante a Hobbes, que prescreve a eliminação desses indivíduos, considerados como partes ilegítimas do corpo artificial.

Não vivemos mais nas sociedades de soberania descritas por Hobbes e Beccaria. Na mudança na economia das penalidades (analisada por Foucault em Vigiar e Punir) que marcam a sociedade disciplinar, o espetáculo público da pena capital deu lugar a outro tipo de horror, a prisão. Os métodos de combate ao inimigo do Estado, assim como às formas de se combater o câncer, se desenvolveram ao longo do século XX, de modo que hoje as tecnologias médicas investem não somente no combate aos tumores em si, mas na prevenção.

No corpo submetido à vigilância da medicina é possível identificar e combater células cancerosas antes da formação do tumor. É de modo semelhante que a legislação de combate àqueles que o Estado identifica como inimigos: vigilância intensa e ostensiva a fim de eliminar potenciais ameaças antes elas possam se agrupar e dar forma a algo que o Estado vê como danoso à sua saúde.

O que precisamos ter em mente, neste caso e em outros semelhantes em que manifestantes são presos e indiciados com base em evidências circunstanciais de um crime que supostamente cometeriam, é que se trata de um padrão de punição que visa punir não o crime, mas as motivações ideológicas.

A rigor não existe uma ação específica que define o crime de terrorismo. Existem ações ilegais, geralmente associadas ao uso ilegítimo da força (que é monopólio do Estado) que podem ser consideradas terroristas de acordo com a motivação ideológica de quem a pratica (a diferença de uma tentativa de homicídio para um atentado está justamente nisso). Isso é muito perigoso, sobretudo no momento em que estamos vivendo, onde a diferença é tratada como doença ou crime.

Estejamos atentos e fortes, pois vai ficar pior.

Por Dra Fhoutine Marie, cientista política
Imagem destacada: do filme Minority Report

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