Malandra, empoderada ou mandada?

Afinal, mulher que dança funk rebolando é mesmo “empoderada” ou está colaborando com a manutenção de estereótipos? As que afirmam trajar hijab, a vestimenta usada por algumas mulheres muçulmanas, por vontade própria não seriam apenas vítimas do patriarcado que precisariam ser salvas? Seria mesmo legítima a escolha da moça que se casa, tem filhos e larga a profissão para se dedicar à família? E a prostituta, não seria uma vítima a quem deveríamos estender a mão? As mulheres em relacionamentos não monogâmicos não estariam, no fim, cedendo ao capricho masculino? E as que colocam silicone e fazem regime para emagrecer?

Parece que de repente as redes sociais foram dominadas por um tipo de “feminismo” (quase sempre branco e de classe média) vigilante e salvador, preocupado em julgar escolhas alheias e indagar até que ponto mulheres têm condição e autonomia para decidir e falar por si. Esses questionamentos até poderiam levar a debates interessantes, se não fosse um elemento bastante conhecido das culturas judaico-cristãs e presente em muitas dessas discussões: a culpabilização, mesmo que disfarçada, usada para deslegitimar certas escolhas, legitimar outras e, no fim, controlar nossa vida e nosso corpo.

Pela lógica desse “feminismo”, à mulher que dissesse gostar ou precisar fazer algo que teoricamente a oprimisse, como, por exemplo, posar nua, só restariam duas alternativas: 1) ela seria vítima do patriarcado, logo sua escolha não seria legítima; 2) ela estaria fazendo o jogo do patriarcado, portanto seria conivente com ele.

Essa lógica é cruel e semelhante àquela utilizada para nos controlar e subjugar.

Essa lógica é bastante cruel e perversa com as mulheres, bem semelhante, na prática, à que sempre foi utilizada para nos controlar e subjugar. Ela joga em indivíduos já oprimidos o peso de problemas estruturais. Em vez de questionar estruturas e oferecer mais alternativas, ela penaliza sujeitos.

A verdade é que essa discussão não leva a nada porque todas as pessoas são influenciadas e até condicionadas, em níveis diferentes, pela cultura e por variáveis socioeconômicas. Se nossa cultura e nossa sociedade são machistas, parece-me óbvio que nossas escolhas e gostos pessoais sejam influenciados pelo machismo, a tal ponto de sequer nos darmos conta.

Se isso é verdade, também o é o fato de que podemos ter autonomia, dentro do possível, para fazer algumas escolhas. Estas são limitadas por variáveis como classe social, raça, nível de escolaridade, idade, entre outras, mas sugerir que uma mulher (em geral, a outra) é apenas vítima e não tem nenhuma autonomia para decidir é paternalismo, é arrogância, é falta de escuta, é julgar a partir de nossos referenciais, é desconhecimento da realidade e das condições em que vivem determinadas mulheres.

Sugerir que uma mulher é apenas vítima sem autonomia é paternalismo, arrogância e falta de escuta.

De fato, muitas têm poucas opções. É fácil para uma moça branca, universitária, que sempre teve acesso à educação e à saúde, cheia de possiblidades futuras dizer não ter engravidado na adolescência porque escolheu, o que, em uma falsa analogia, nos faria pensar que todas as que engravidaram o fizeram por escolha.

Sabemos que não é tão simples assim. Algumas mulheres têm menos privilégios que outras, isso é inegável e limita oportunidades. Outras de fato precisam de ajuda, como as que vivem relações abusivas. Contudo, insinuar que, por isso, as escolhas das mulheres que não têm tantas alternativas não são legítimas ou devem ser questionadas me parece a negação do próprio feminismo.

Além disso, significa ignorar que é possível, sim, apropriar-se de uma cultura machista e subverter sua lógica, desde que haja condições para isso. Quando a mulher se coloca como sujeito, como agente e não como objeto que apenas sofre a ação, é isso que ocorre.

Quando a mulher se coloca como sujeito e não como objeto, é isso que ocorre.

É importante questionarmos nossa cultura, pensarmos em como o machismo (e não só ele) influencia nossas escolhas e em como é essencial rompermos com estruturas de poder que nos silenciam e buscam nos controlar. No entanto, também é necessário acreditarmos que mulheres podem ser agentes da própria vida em algum nível, mesmo em condições limitadas, e que não nos cabe julgar nem deslegitimar escolhas pessoais e comportamentos alheios que não firam outros, mas ampliar possibilidades.

Não nos cabe julgar ou deslegitimar escolhas e comportamentos alheios, mas ampliar possibilidades.

O feminismo tem muito com o que se preocupar: altas taxas de feminicídio, de violência doméstica, em especial entre mulheres negras, de casamento infantil, de estupro, de gravidez na adolescência, entre outros problemas. O controle do nosso corpo e da nossa sexualidade, mesmo que com a intenção de nos libertar, não deveria ser pauta.

Que mais mulheres tenham cada vez mais condições de fazer escolhas legítimas, de questionar caminhos, de identificar opressões e romper com elas, se assim quiserem, e de poder optar pelo que desejam, sem que sejam desqualificadas por isso.

Por Mariana Varella
Imagem destacada: do clipe Vai, Malandra, de Anitta

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