África e diáspora – Deise Nunes entrevista Minna Salami

Novos olhares sobre a África e sua diáspora: Uma conversa com a pensadora Minna Salami sobre afropolitanismo, estereótipos da mulher negra e novos paradigmas de conhecimento.
Por Deise Nunes* – Golden Mirrors Arts Norway

Minna Salami é uma pensadora interdisciplinar, escritora e palestrante de origem nigeriana, finlandesa e sueca. Considerada uma das mais proeminentes vozes feministas da atualidade, foi mencionada pela revista Elle Malásia, ao lado de ícones como Michelle Obama e Angelina Jolie, como uma das 12 mulheres que estão mudando o mundo. Salami é Mestra em Estudos de Gênero (mérito) pela Escola Superior de Estudos Orientais e Africanos (SOAS, na sigla em inglês) da Universidade de Londres e Bacharel em Ciências Políticas pela Universidade de Lund, na Suécia.

Blogueira popular desde 2007, ela criou em 2010 a página MsAfropolitan, (Senhorita Afropolitana), tornando-se figura central na difusão do afropolitanismo, conceito este que está dando origem a paradigmas epistemológicos inovadores e novas perspectivas sobre aspectos filosóficos da cultura afrodescendente.

Segundo Salami, o afropolitanismo é uma interação analítica glocal (tanto global como local) entre texturas interculturais, filosóficas, psicossociais e espirituais formadas pela África passada, presente e futura. Para ela, afropolitanismo, pan-africanismo e diáspora são conceitos sinergéticos.

O termo apareceu em diferentes círculos acadêmicos no inicio dos anos 2000 (Balakrishnan, 2017), ganhando popularidade em 2005 com a publicação do artigo fundamental da escritora Taiye Selasi “Adeus, Barbar” (ou “O que é um afropolitano”, sem tradução para o português). O artigo inspirou Minna Salami a usar o termo para nomear seu blog. Disseminado por Selasie e Salami, o afropolitanismo se popularizou como um conceito que abarca novos paradigmas de identidades na África e na diáspora.

Objeto de debate interdisciplinar, com contribuições de estudiosos como o filósofo Achille Mbembe (N. Ed.: leia mais aqui), a historiadora, acima citada, Sarah Balakrishnan e a pesquisadora Emma Dabiri, o afropolitanismo tem, nos últimos anos, influenciado fortemente o campo das artes, do design e modelos inovadores de empreendedorismo.

Sobre o que distingue o afropolitanismo do pan-africanismo, Salami afirma que estes conceitos podem ser comparados a dois capítulos de um mesmo livro. Porém, diferente do pan-africanismo, o afropolitanismo é por definição um espaço fortemente influenciado pelo pensamento feminista interseccional.

Minna Salami no Oslo World 2017. Créditos: Lars Opstad / Oslo World

Conheci Minna Salami durante o Oslo World – festival internacional de música, cultura e ideias, que acontece anualmente no final de outubro na capital norueguesa. Palestrante e panelista solicitada, Salami havia sido convidada para fazer o discurso de abertura do festival. Ao final do festival, ela generosamente me concedeu a seguinte entrevista:

D. Como o afropolitanismo surgiu para você?

M. Comecei a escrever meu blog em 2007. Fui parte da primeira leva de blogueiros. Após certo tempo, o blog foi ficando cada vez mais popular, e eu comecei a notar um interesse maior dos leitores quando eu tratava de assuntos relacionados à África, à diáspora e ao feminismo. Assim, em 2010 eu decidi consolidar o projeto e direcionar meu foco a esses temas, pois até então, eu falava de tudo um pouco. Eu poderia escrever sobre o meu dia ou algo que encontrara no meu cotidiano em Londres, mas, como disse, eram os posts sobre o feminismo pan-africano que atraíam o número maior de leitores, e meu interesse também foi se consolidando em torno desses aspectos da minha escrita.

Para ser honesta com você, eu não pensei muito, no momento em que o termo Afropolitan me veio à mente. E, de fato, ele não veio como uma palavra isolada, mas como expressão: Ms. Afropolitan. Ms. pronome de tratamento na língua inglesa, por ser uma maneira feminista de se apresentar sem revelar o estado civil, o que uma mulher jamais deveria precisar fazer.

Então, Afropolitan. Algum tempo antes, eu havia lido o artigo de Taiye Selasi, “Adeus, Barbar” ou “O que é um afropolitano?”. Eu lembro que quando o li pela primeira vez, não pensei: “Oh, isso sou eu, me representa”, mas eu senti algo como: “Eu nunca li nada como isso”. O artigo me instigou, era conceitualmente desafiador, progressivo, e como uma pessoa fascinada por ideias, aquilo para mim foi muito instigante. O termo ficou na minha mente, e eu o revisitei quando decidi renomear meu blog.

D. E isso descortinou um mundo conceitual totalmente novo.

M. Sim, completamente. Obviamente, sem saber o que futuro traria, quando escolhi esse termo, eu não fazia ideia de que ele se tornaria comumente usado em espaços acadêmicos, culturais e assim por diante. Eu penso que de certa maneira foi destino, pois todos os diálogos que surgiram, tanto as contribuições positivas como as críticas em torno do termo “afropolitano”, tem moldado minhas ideias, meu pensamento sobre identidade, filosofia e as relações diáspora-continente. Se esses diálogos não tivessem acontecido, eu talvez não me aprofundasse tanto nesse tema.

D. No seu Ted Talk (N.Ed.: vídeo abaixo) você fala sobre três estereótipos da mulher africana explorados pela mídia mainstream: a batalhadora sofrida, a sobrevivente e o estereótipo da mulher africana empoderada. Você acha que essas representações se aplicam às novas gerações da diáspora, especialmente na Europa, jovens negras que por exemplo, não se identificam com o sofrimento como parte inerente da experiência da mulher negra?

To change the world, change your illusions | Minna Salami | TEDxBrixton

M. Acho que não necessariamente, e talvez não diretamente. No entanto, pode-se dizer que, numa perspectiva global, as mulheres negras na diáspora são frequentemente associadas às narrativas estereotípicas acerca da mulher africana. Então, sim, eu concordo com você, esses estereótipos talvez não se apliquem diretamente, mas eu penso que a imagem, a representação das mulheres africanas, das mulheres do continente, afeta todas nós, mulheres de origem africana, não importa em que parte do mundo estejamos. Assim, enquanto essas mulheres não forem vistas como totalmente humanas, nós também não o seremos, podendo nos tornar marionetes de uma ordem mundial, em um pseudo-empoderamento. Podemos ver mulheres negras nos EUA, no Brasil, na Europa fazendo coisas fantásticas, mas a ideia de uma mulher africana original continua alimentando esse tipo de narrativas estereotípicas. Entende? É como uma dissonância, a nossa emancipação se torna uma paródia do ideal ocidental, e, de certa forma, nunca somos totalmente humanas.

D. Então, a forma como nos vemos se torna constantemente influenciada por uma dupla consciência, como escreveu W. E. B. Dubois em “A Alma da Gente Negra” (1903).

M. Exatamente. Não somos autodefinidas. Meu sonho é que as próximas gerações tenham um poder tal de definir a si mesmas, que cada vez que uma menina de origem africana buscar representações de mulheres como ela própria, ela veja seres humanos. Seres humanos, é só o que essas representações precisam ser. Não uma caricatura do que significa ser uma mulher negra. Seja a caricatura da “Beyoncé empoderada”, seja a caricatura da mulher pobre e sofrida, é sempre uma caricatura.

D. Eu reconheço esses três estereótipos, e como você diz, eles são parte de uma espécie de dramaturgia sociocultural construída para definir a identidade da mulher negra. Como, então, no seu pensamento, nós poderemos nos libertar dessas representações estereotípicas, como mudar essas narrativas?

M. Eu acho que, em primeiro lugar, através de um processo de cura, uma cura conectada à ideia do autoconhecimento. Tornar-se o seu próprio mestre, o seu próprio guia. Acho que isto é a coisa mais importante, mas também a mais difícil e complexa, não há uma fórmula para isso. Mas quando realmente começamos a conhecer a nós mesmas, a questionar todos esses paradigmas, os bons e os maus, avançamos. Precisamos começar a ver a nós mesmas como seres humanos. E eu me emociono, me toca profundamente pensar o quão raramente o fazemos. No nosso espaço privado, pessoal, essas narrativas patriarcais e imperialistas frequentemente vem interromper nossos pensamentos acerca de nós mesmas. E nós não iremos adiante enquanto eu, você, nossas filhas e as filhas delas, não pudermos olhar no espelho e enxergar um ser humano, pura e simplesmente.

*Deise Nunes é pesquisadora especialista em teatro, interessada em colaborações interdisciplinares. Sua pesquisa de mestrado foi conduzida durante os rituais do culto do Candomblé afro-brasileiro e os princípios da antropologia teatral de Eugenio Barba. Tendo um interesse especial em investigações teórico-práticas sobre etnia e gênero no campo das artes, em 2017 estabeleceu a Golden Mirrors Arts Norway. É também desenvolvedora de projetos no Nordic Black Theatre, em Oslo.

A entrevistadora Deise Nunes. Créditos: Golden Mirrors Arts Norway

 

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