A era do humanismo está chegando ao fim

Por Achille Mbembe, originalmente publicado em inglês em Mail&Guardian. Tradução de Stefanie Cirne para Casa da Mãe Joanna.

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Não há indícios de que 2017 será muito diferente de 2016.

Sob ocupação israelense há décadas, Gaza continuará sendo a maior prisão à céu aberto do mundo. Nos Estados Unidos, o assassinato de pessoas negras pelas mãos da polícia seguirá implacável, e centenas de milhares se juntarão àquelas já alojadas no complexo prisional-industrial que sucedeu a escravidão e as leis de Jim Crow. A Europa dará seguimento ao seu lento mergulho no autoritarismo liberal, ou no que o teórico da cultura Stuart Hall chamou de populismo autoritário. Apesar de acordos sofisticados firmados em fóruns internacionais, a destruição ecológica da Terra continuará, e cada vez mais, a guerra ao terror se transformará em uma guerra de extermínio entre diversas formas de niilismo.

As desigualdades continuarão crescendo em todo o mundo. Mas longe de alimentar um novo ciclo de lutas de classe, os conflitos sociais tomarão cada vez mais a forma do racismo, ultranacionalismo, sexismo, das rivalidades étnicas e religiosas, da xenofobia, homofobia e outras paixões mortíferas. O rebaixamento de valores como o cuidado, a compaixão e a bondade caminhará lado a lado (sobretudo entre os pobres) com a crença de que vencer é tudo que importa — e quem vence, por qualquer meio necessário para tal, está definitivamente certo.

Com o triunfo desta abordagem neodarwinista ao fazer histórico, o apartheid será restaurado sob diversas facetas como a nova velha norma. Sua restauração pavimentará o caminho para novos impulsos separatistas; a ereção de mais muros; a militarização de mais fronteiras; formas letais de policiamento; mais guerras assimétricas; o desmanche de alianças e inúmeras divisões internas, inclusive nas democracias estabelecidas.

Nenhum desses eventos é acidental. Se alguma coisa, é um sintoma de mudanças estruturais que se tornarão mais aparentes conforme o novo século se desenrola. O mundo como nós o conhecemos desde o fim da Segunda Guerra, os longos anos da descolonização, a Guerra Fria e a derrota do comunismo acabou. Outro jogo, longo e mais letal, iniciou-se.

A grande colisão da primeira metade do século 21 não vai opor religiões ou civilizações. Deve opor democracia liberal e capitalismo neoliberal; a lei das finanças e a lei do povo; humanismo e niilismo. O capitalismo e a democracia liberal triunfaram sobre o fascismo em 1945 e sobre o comunismo no início dos anos 1990, quando a União Soviética (URSS) entrou em colapso. Com a dissolução da URSS e o advento da globalização, seus destinos se desligaram: a bifurcação crescente entre democracia e capital é a nova ameaça à civilização.

Instigado pelo poderio tecnológico e militar, o capitalismo financeiro alcançou sua hegemonia sobre o mundo anexando o cerne dos desejos humanos e tornando-se, no processo, a primeira teologia secular global. Mesclando os atributos de uma tecnologia e de uma religião, apoiou-se em dogmas incontestes que as formas modernas de capitalismo haviam relutantemente compartilhado com a democracia desde o período pós-guerra: liberdade individual, competição de mercado, as regras de bens e propriedade, o culto à Ciência, à tecnologia e à razão.

Cada um desses atributos de fé está sob ameaça. Em essência, a democracia liberal não é compatível com a lógica interna do capitalismo financeiro. O choque entre estas duas ideias e princípios é provavelmente o evento mais significativo do cenário político da primeira metade do século 21 — um cenário moldado menos pela lei da razão do que pela liberação geral de paixões, emoções e afetos.

Neste novo cenário, o conhecimento será definido como conhecimento para o mercado. O próprio mercado será reimaginado como o mecanismo primário para a validação da verdade. Conforme os próprios mercados se transformam cada vez mais em estruturas e tecnologias algorítmicas, o único conhecimento útil será o algorítmico. Em vez de pessoas com carne, corpo e história, inferências estatísticas serão tudo o que conta. Estatísticas e outros big data serão derivados em sua maioria da computação. Como resultado da convergência entre conhecimento, tecnologia e mercados, o desprezo será estendido a qualquer um que nada tenha a vender.

A noção humanista e iluminista do sujeito racional, capaz de deliberação e escolha, será substituída pela do consumidor conscientemente deliberando e escolhendo. Um novo tipo humano (já em construção) triunfará: não o indivíduo liberal que, há pouco tempo, acreditávamos que seria o sujeito da democracia. Este novo ser humano será constituído por meio de e no interior das tecnologias digitais e mídias computacionais. A era computacional — a era do Facebook, Instagram, Twitter — é dominada pela ideia de que há tábulas rasas no inconsciente. As novas mídias não simplesmente revelaram o véu que as eras anteriores haviam colocado sobre o inconsciente: elas se tornaram as novas infraestruturas do inconsciente.

Anteriormente, a sociabilidade humana consistia em supervisionar o inconsciente. O progresso social dependia de um exercício de autovigilância ou da delegação do direito de vigilância a autoridades específicas. A isto, chamava-se repressão. A principal função da repressão era criar condições para a sublimação. Nem todos os desejos poderiam ser realizados; nem tudo poderia ser dito ou levado a cabo. A capacidade de limitar a si mesmo era a essência da liberdade individual e coletiva.

Em parte graças às novas mídias e à era pós-repressiva que elas inauguraram, o inconsciente pode hoje correr solto. A sublimação deixou de ser necessária. A linguagem foi deslocada: o conteúdo está na forma e a forma está além do, ou excedente ao conteúdo. Somos agora levados a acreditar que a mediação não é mais necessária. Isso explica a crescente instância anti-humanista que caminha lado a lado com um desprezo geral pela democracia.

Chamar esta fase da nossa história de “fascista” pode ser enganoso, a menos que por “fascismo”, nós nos refiramos à normalização de um estado social de guerra. Este estado seria em si um paradoxo, porque a guerra, se alguma coisa, leva à dissolução do social. Ainda assim, sob as condições do capitalismo neoliberal, a política se tornará uma guerra mal sublimada. Este será um conflito de classe que negará a sua própria natureza — uma guerra contra os pobres, uma guerra racial contra as minorias, uma guerra de gênero contra as mulheres, uma guerra religiosa contra os muçulmanos, uma guerra contra aqueles em desvantagem.

Da sua emergência, o capitalismo neoliberal deixou uma multitude de sujeitos destruídos, muitos dos quais estão profundamente convencidos de que seu futuro imediato será de exposição contínua à violência e ao risco existencial. Eles genuinamente sentem falta de algum senso de certeza, do sagrado, da hierarquia, da religião e da tradição. Acreditam que as nações parecem pântanos a serem drenados, e que o mundo como é hoje deveria acabar. Para que isto aconteça, tudo deve ser limpo. Eles estão certos de que só podem ser salvos em uma batalha violenta para restaurar a sua masculinidade, a perda da qual eles atribuem aos mais fracos entre eles — os fracos que eles não querem se tornar.

Neste contexto, os empreiteiros políticos mais bem-sucedidos serão aqueles capazes de persuadir os perdedores, os homens e mulheres destruídos da globalização e suas identidades arruinadas. Na briga de gangues que a política se tornará, a razão e os fatos não terão importância. A política se reverterá em uma luta brutal por sobrevivência em um ambiente ultracompetitivo. Sob estas condições, o futuro de políticas de esquerda de viés massivo, progressista e futurístico é bastante incerto.

Em um mundo baseado na objetificação de todos e tudo aquilo que vive em nome do lucro, o apagamento da política pelo capital é a verdadeira ameaça. A transformação da política em negócio coloca o risco da eliminação da própria possibilidade de política. Se a civilização será ou não capaz de dar alguma vazão a qualquer forma de vida política é o problema do século 21.

 

Achille Mbembe é professor do Instituto Wits de Pesquisa Social e Econômica (África do Sul). Seu novo livro, The Politics of Enmity, será publicado pela Duke Duke University Press em 2017.

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