Feminismo: a casa que abriga aquelas que ousam desobedecer e duvidar

Vivemos em estado de guerra, e é a narrativa que está em disputa. Os homens fracassaram e se sentem ameaçados, a masculinidade (tão frágil, tão frágil) agora ataca para mais uma vez consolidar seu poder através do capitalismo, da ciência racionalista e da violência contra mulheres, pessoas negras, periféricas, transviadas, desnormatizadas e pobres.

E pra isso acontecer toda a mediocridade e toda cegueira serão bem recompensadas e aplaudidas.

Todos os valores considerados “femininos” serão cada vez mais diminuídos e subestimados: amor é coisa de gente fraca; empatia não existe; intuição é bobagem; cuidado é secundário ou nulo; afeto é fraqueza; ser fofo é ser menos, acolhimento nem se sabe o que é. Estamos vivendo pra ver a força do grande pai repressor, das masculinidades tóxicas, do racionalismo limitador e da mais absurda desumanização tomar corpo e agir usando a tecnologia sem nenhuma coerência ética. O inconsciente, mais do que nunca, está sendo bem manipulado.

Enquanto algumas pessoas permanecem com os dois pés bem fincados no mito moderno da civilização, outras seguem na incerteza do que ainda não foi inventado, sentindo na pele a dor da transformação e a solidão do despertar. E é por isso que o mundo precisa de mais feministas.

Mas se dizer feminista só pela forma, num simulacro pra parecer bonito e contemporâneo, não adianta.

Usar o feminismo para outros fins que não sejam a mudança de consciência é entrar no jogo já bem velho mas agora atualizado e contribuir para esvaziar e enfraquecer um dos movimentos que sustentam a base de um possível e improvável mundo novo (quer dizer, se realmente existir esse mundo, será a munda nova).

A mudança não está fora, está dentro, bem dentro, no fundo, e atinge o inconsciente. Não vai existir mudança da consciência coletiva sem uma real mudança interna poderosa. A chave tá dentro, a porta tá fora. Cagar regra não vai melhorar. Manipular não vai adiantar. Fingir não vai ajudar. Fragmentar só piora (portanto, não adianta pensar só em classe se não pensar em gênero, raça e por aí vai).

Nenhum pobre oprimido vai se libertar pisando nas mulheres, ignorando e silenciando a negritude, matando as bicha transviada e toda forma de amor que desvie da rota normatizada do mundo hétero-masculinista. Ninguém subalternizado consegue sair de seu estado de opressão sem se conhecer internamente. De novo, a mudança não tá fora, tá dentro. Não adianta se dizer feminista e manter regras de hierarquia rígidas e verticalizadas. Não adianta se dizer feminista e usar as pessoas como se fossem coisas descartáveis. Não adianta se dizer feminista e perpetuar relacionamentos abusivos e opressores.

Quando a gente fala e fala e fala de feminismo não estamos falando apenas abstratamente de um mundo externo e de pessoas sem rosto e sem nome, pra um futuro distante. Feminismo é sobre como colocar em prática, agora, na nossa vida, no nosso labirinto mais fundo, a igualdade real, o amor, o cuidado, o afeto e a atenção.

E essa abordagem que começa dentro de nós, segue pelos nossos relacionamentos, vai longe até a política, permanece nos pequenos detalhes e se infiltra em todos os aspectos do que fazemos.

Feminismo não é meu e nem de nenhuma pessoa específica. É, antes disso, a casa que abriga aquelas que ousam desobedecer e duvidar.

Por Bruna Paludo
Imagem destacada: Judy Chicago, The Dinner Party, 1974 – 1979

Comments

Comentários