Feminismo e afetos tristes
Minhas andanças online me levaram hoje até um texto de uma moça que está cansada de tretas entre feministas e que jamais imaginou que o movimento, tão importante para ela, fosse tomar esse rumo.
Eu também estou no time das feministas cansadas, mas, talvez mais do que cansada, eu me sinto uma feminista medrosa, impaciente, angustiada com a percepção de que parecemos nunca estar vigilantes o suficiente quanto aos males que combatemos.
Esses tempos assisti um psicólogo comentando que o élan de Jair Bolsonaro não era ser uma pessoa odiosa em si: era ter o talento de mobilizar o que há de pior em todas as pessoas. Nas que concordam com ele – por razões óbvias – e nas que discordam, porque estas passam a sentir e fazer circular os afetos mais baixos que um ser humano pode emular. Tristeza, impotência, raiva, ódio, desejo de morte. Bolsonaro é desprezível porque multiplica a pobreza de espírito à sua volta. É um atentado político porque é vetor de tudo aquilo que torna a vida em sociedade menos harmoniosa, mais desgastante, mais difícil.
E por que estou falando de Jair Bolsonaro em um post sobre feminismo? Porque guardadas as devidas proporções, há mais semelhanças entre feministas e fascistas do que julga a nossa vã ênfase na diferença. O confronto romântico que construímos na nossa cabeça geralmente não acomoda as tênues linhas que separam o revolucionário do reacionário, o libertário do conservador, a esquerda da direita. E eu vejo nisso uma explicação para a nossa autocrítica ser tão miseravelmente falha em alguns aspectos, e com tanta frequência.
O mal, já dizia Hannah Arendt, não aterroriza somente pela barbaridade, mas sobretudo pela banalidade.
Todas as pessoas são capazes de agenciá-lo. Tão perigoso e assustador quanto o inimigo “lá fora”, o opressor que eu acuso, é a parte dele que mora dentro de mim e que eu não enxergo – e, por não enxergar, não controlo. Essa é uma dimensão de nós que nunca dorme: ela se avantaja na primeira oportunidade de, em outros contextos, incorporarmos o poder sobre o outro. Manipular afetos tristes não é a exclusividade de ninguém, mas um denominador comum entre os seres humanos. Todos somos capazes de articular coisas baixas e, com isso, perpetrar até o que desejamos sem compreender.
Com isso, queria apenas convidar vocês a refletirem comigo sobre como vocês, com o seu feminismo, facilitam não apenas a construção, mas a destruição. Como, por serem vítimas, vocês também se tornam algozes dos outros. Se, no universo de vocês, estamos conseguindo equilibrar essas duas facetas. E finalmente, como nós podemos nos apropriar dessas “sombras” e nos tornarmos mais fortes.
O “inimigo” instrumentaliza nossas fragilidades porque cooperamos com o seu objetivo: a engrenagem do ódio só gira quando encontra mais ódio para se autoalimentar. Se nunca nos encontrarmos na vilania que é “do outro”, que está “tão fora”, “tão longe” de nós, nunca teremos como oferecer resistência a ela.
Não é legal ser a chata que vem “prestar desserviço” ao movimento visibilizando o que não funciona nele, mas venho pensando que o resgate da nossa “menina má” é urgente. Talvez esse esforço seja uma das únicas coisas que podem unificar os fragmentos de humanidade que vemos em conflito.
Um dos poucos lembretes que, para além de gênero, sexualidade, raça ou qualquer outra identidade, não somos só diferença: há, sim, algo que nos identifica enquanto militantes e principalmente, enquanto sociedade. O que todo esse bate-boca pode nos revelar sobre isso?
Por Stefanie Cirne
Imagem destacada: daqui
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