Quem é o sujeito que fala *por*, e quem é o sujeito que fala *de*?

Preciso falar uma coisa na qual (não) acredito do fundo do meu coração: não acredito que pessoas privilegiadas saibam exatamente o que é estar na pele de pessoas oprimidas.

Isso quer dizer que pessoas privilegiadas não podem falar sobre situações de opressão? Isso quer dizer que só grupos oprimidos podem falar? NÃO!

Primeiro porque enquanto esse país ainda é uma democracia (frágil e em moldes meio suspeitos, né?) cada um fala o que quiser desde que arque com as consequências.

Segundo porque a teoria do lugar de fala não defende exclusão. Quem a estuda de verdade sabe que ela apenas demonstra a consciência do/da pesquisador/a sobre as limitações que seu lugar social gera. Ela demonstra também o quão arcaicos, cínicos e vis são os pressupostos do saber universal e imparcial.

Se não for pensada dessa forma, a teoria do lugar de fala pode ser usada de formas ignorantes – e falo da ignorância do não-saber mesmo, da ignorância de quem segue no “efeito boiada”… Mas não gosto de animalizar as pessoas, então talvez um termo mais adequado para este fenômeno, o de replicar pensamentos sem refletir sobre eles, seja “efeito avalanche”. “Efeito avalanche” define o resultado das naturalizações que têm um ponto inicial, mas que são repetidas em tantos contextos que, em determinado momento, nem se consegue mais resgatar sua origem.

Entretanto, a sensibilidade de saber-se privilegiado pressupõe (ou deveria pressupor) que o sujeito dotado deste poder simbólico saiba ouvir o sujeito que sofre opressão, porque apesar de Spivak ter concluído que o subalterno não pode falar – e nisso concordo com ela, principalmente porque não lhe/nos é dado o direito de ser ouvido com respeito, e não por não saber falar como muita gente acredita – podemos modificar essa situação em nossas práticas cotidianas.

Eu, mulher negra acadêmica, não acredito em homens feministas, não acredito em héteros que falem pelo grupo LGBTQI e muito menos brancos que falem por negros. Isso porque falar por alguém é tirar deste alguém o direito de falar por si só, e esse meu não acreditar não é separatista. Pois acho que héteros podem falar de causas LGBTQI, que brancos podem falar de racismo, que homens podem falar sobre feminismos… todo mundo pode falar sobre tudo (ainda – não sabemos para onde nossa situação política nos levará…).

O que a história e a experiência pessoal me dizem é que quando grupos potencialmente opressores tomam a palavra de grupos oprimidos, a sociedade tende a ouvir mais quem tem maior capital/poder simbólico e deixa de ouvir quem sabe o que está sofrendo e como o sofrimento lhe aflige. Isso acaba por gerar uma situação de silenciamento e aí entramos em outro ponto de opressão numa lógica social cada vez mais complexa.

Então acho bom pararem de dizer que grupos oprimidos são exclusivistas e não deixam ninguém falar por eles (se formos honestas/os saberemos que qualquer um tem falado por eles há tempos e só na atual conjuntura eles podem, moderadamente, falarem por si). O que pessoas oprimidas querem é ter o direito de serem ouvidas, e com dignidade e respeito pelo que têm a dizer. O oprimido não pode silenciar a ninguém porque esse poder simbólico o oprimido não têm.

O que se espera, de fato, é respeito, reconhecimento e legitimação de sua fala.

E mais uma vez, acho ótimo que todos possamos apoiar causas que não são nossas. Mas a própria teoria do local de fala nos mostra o quão parciais e incompletos somos para querermos ser porta vozes de lutas que não são nossas, e a humanidade nos comprova todos os dias que toda as vezes em que deixamos de ser vigilantes no direito do outro falar por si mesmo, um silenciamento violento ocorre.

Então homem dizendo que é feminista e não pró-feminismo, branco, hétero e rico se achando no direito de falar sem cuidado algum por negros/as, LGBTQIs e pobres são o primeiro passo para o processo de silenciamento.

Conheço muitas pessoas que considero qualificadas para falarem por grupos oprimidos (e elas falam DE ou SOBRE, nunca POR), e nenhuma delas chora pelo direito de falar por eles, todas reconhecem suas limitações e se mostram como parceiras/os de lutas antirracistas e contra todas as exclusões de minorias. Nenhuma delas cria conflitos, faz textão, ou briga feio para dizer que é mais feminista que muita mulher, mais antirracista que muito negro, mais LGBTQI que muito LGBTQI… porque sabem que não é disso que opressão se trata.

Quem entra neste debate específico sem a reflexão acerca da diferença entre falar de/sobre e falar por não está fazendo nada além de disputar poder com oprimidos e desviando o foco do problema principal, que é promover o respeito pela pluralidade social.

Quem insiste em falar por está apenas querendo demarcar território e dizer que tem poder.

Por Adélia Mathias*
Imagem destacada: detalhe de um pixo, Pompidou Paris, por @tyzengzeng

* Adélia Mathias faz doutorado em literatura brasileira, com ênfase na literatura afro-brasileira contemporânea escrita por mulheres. Mulher negra, filha de mãe solteira, feminista e pesquisadora de relações de raça e gênero.

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