Identidade não-idêntica e gênero

Rolou um debate sobre identidades de gênero numa comunidade do facebook. Daí me pediram para falar sobre Hegel e o que a ideia de identidade não-idêntica tem a ver com o assunto. Tentei explicar um pouco desse importante conceito dentro do pensamento dialético, apontando relações com a realidade do sistema de gênero.

“O rolê da identidade não idêntica é tretoso e difícil de explicar de um jeito fácil. Se não der pra entender, podem me avisar.

Antes de falar da identidade não idêntica, ou unidade das contradições, ou identidade das contradições, é melhor falar antes da “identidade idêntica” ou identidade da lógica formal (essa que todo mundo usa sem saber, a lógica da matemática e do raciocínio de causa X efeito).

Na lógica formal a identidade é um princípio fundamental, ela governa sobre a própria noção de causa e efeito e sobre o silogismo, base do nosso raciocínio comum. A fórmula clássica diz “se Sócrates é homem e todo homem é mortal, logo, Sócrates é mortal”. Assim, faz muito sentido, não é verdade? Mas vamos pegar sobre o gênero “se Sócrates é homem e homem não chora, logo, Sócrates não chora” ou, “se Sócrates é homem e homem que é homem é heterossexual, logo, Sócrates é heterossexual”. Funciona muito bem né? Só que não…

A fórmula é: A=B, B=C => A=C. isso acontece porque assumimos que B=B (todo sujeito homem deve ser igual ao que é ser homem, o seu predicado)

Supondo que essa lógica esteja certa, claro que temos que criar uma identidade por minuto, afinal, nunca estaremos perfeitamente encaixados “nas caixinhas” do gênero. Se eu não sou hetero ou se eu não tenho a perfeita expressão do gênero masculino, não posso ser homem, tenho que procurar um gênero pra mim, depois que eu encontrar esse gênero, também não estarei satisfeito, pq eu mudo, sou “fluído” minhas expressões nunca estarão plenamente contempladas naquele gênero. No limite, eu posso acabar querendo um gênero só pra mim, que estará sempre idêntico à mim mesmo, sem contradições. Essa é a “identidade “idêntica”” (ninguém chama desse jeito, chamam só de identidade ou identidade formal).

Acontece, que eu mesmo tenho as minhas contradições comigo mesmo. Se eu digo que gosto de algo, posso não gostar deste algo em determinadas circunstâncias e isso ser estranho pra mim. A nossa mente, cria da sociedade capitalista, com suas ideologias, formas científicas etc. etc. tem “horror a contradição”. Se algo é igual a outro algo, não pode ser diferente. Só que SEMPRE é.

Daí chegamos na contradição. Na lógica formal, isso que acontece o tempo todo (a tal da contradição) é proibida. Eles chamam isso de “princípio da não-contradição” que diz que se “A=B, A não pode ser diferente de B” NUNCA.

Uma das contradições principais e mais recorrentes na dialética é aquela que eu apontei acima: a contradição entre sujeito (Sócrates) e predicado (ser homem e tudo aquilo que vem com isso). Mas dizemos que, na realidade, nenhum sujeito “passa” no seu predicado, isso é, ele não pode ser totalmente explicado pelo predicado e será contraditório com determinações do predicado (se esse homem não é hetero ele está contradizendo algo do “homem homem de verdade”). Além disso, o próprio predicado tem suas contradições internas: o homem deve ser “macho”, duro, firme, mas também cavalheiro e gentil com as damas. Como pode? Um lado do predicado contradiz o outro, logo, mesmo que esse exemplar de homem fosse o mais masculino de todos, ainda restaria contradição.

Se aceitamos que os predicados (no nosso caso, o gênero) serão sempre insuficientes para dar conta de identificar qualquer sujeito, entendemos que a identidade de um sujeito com seu gênero é não idêntica. É por isso que o subtítulo do “Problemas de Gênero” da Butler é “Subversão da identidade”. Pois não se trata de tentar criar um predicado perfeitamente adequado a cada um dos seres. Mas compreender a dinâmica negativa (no sentido de negação, de contradição, não no sentido de “coisa ruim”) do gênero enquanto sistema. Aceitando isso, o segundo passo é estender a contradição, o negativo, tensionar o gênero.

Não quero dizer com isso que as novas identidades sejam espúrias. Se é muito importante para o sujeito criar para si essas alternativas de modo a sobreviver nesse sistema, ninguém tem que dizer nada em contrário. Afinal, o horror a contradição e o papel opressor do sistema de gênero são por si só muito fortes. Mas além disso, precisamos tensionar o próprio sistema de gênero, compreendendo sua relação com outros sistemas de dominação, como a relação de capital e a sociedade de classes. Mas isso é papo pra outro post.”

 

Por Leonardo Guimarães, publicado originalmente no medium. 

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Camila França

Camila França
Formada em Moda pela Udesc (2005) e pósgraduada pelo SENAC (2009) em Florianópolis, trabalhou por oito anos na indústria da moda como estilista. Em 2013, partiu em busca de qualidade de vida e atualmente dedica quase todo seu tempo ao desenho. Frequenta aulas de Artes Visuais a fim de conhecer e desenvolver sua própria poética. Seus desenhos exploram o universo feminino com técnica mista, grafite, nanquim, aquarela, marcadores e tinta acrílica.

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Jornalismo é a formação, produção de moda é o ganha-pão, escrita é a paixão. Radicada em Londres há mais de uma década, estudou no London College of Communication e depois foi trabalhar com um bocado de gente grande, de Adidas à Ivete Sangalo, da TPM à Vice, e gostaria de largar tudo e só escrever. Além de feminista, é progressista, ateísta, e uma porção de *istas* que causam desconforto por onde passa. Mãe de uma garotinha de 4 anos, com quem divide uma paixão por filmes japoneses e contos de fadas subversivos.

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Thainá Battesini Teixeira, é gaúcha e tem 23 anos. Está no último ano de graduação em História pela Universidade de Passo Fundo – UPF e é bolsista de iniciação cientifica – CNPq pesquisando as Fontes Visuais Impressas: Possibilidades de Pesquisa: Os papéis sociais atribuídos ao gênero feminino na Revista KodaK. Milita pelo Coletivo Feminista Maria, vem com as outras! e participa da organização da Marcha das Vadias de Passo Fundo no Rio Grande do Sul.

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An explorer, Belle is about to set sail on a voyage of discovery that will be  her toughest expedition yet.  Look out for her dispatches from the frontier as Belle Kurves embarks on a quest to find the “new truth” foreshadowed by Hester Prynne – the key to establishing “the whole relation between man and woman [indeed all genders] on a surer ground of mutual happiness.
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Comunicação social, educação e feminismo – não necessariamente nessa ordem. Já trabalhei em agências, produtoras, departamentos de marketing, escolas, projetos sociais e até no Coliseu (esse mesmo). Tudo isso, em diferentes graus, em Porto Alegre, Florianópolis, Madri, Roma, Dublin e Londres, onde fiz um mestrado em Gênero, Mídia e Cultura pela LSE. Mas eu saí de Criciúma, SC.

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