A materialidade das mulheres importa
O corpo das mulheres possui características fisiológicas que diferem das dos homens. Esse fato não pode ser negado. Quem nasce com útero passa por situações que não pode controlar, a não ser com o uso de medicamentos – como menstruar, por exemplo.
Não interessa ao mundo falocentrado que mulheres tenham domínio sobre seus corpos. Em vez disso, nos ensinam que nossos corpos são defeituosos. Que somos nojentas com tantos fluídos. O que dizer dos nossos pelos e do nosso suor, que perdemos o direito de ter – ou melhor, de manter – como os homens?
A quem interessa a nossa biologia? Por que tanto tabu sobre como ela nos afeta? Por que somos ensinadas a descartar toda e qualquer sabedoria que visa celebrar a natureza de nossos corpos?
Chegamos ao cúmulo de buscar suprimir a natureza de nossos corpos de todas as formas possíveis. Somos obrigadas a esquecer de que somos mulheres. Que temos características únicas a nós. É importante falar destas características, explicar às meninas que estas características têm funções próprias, que elas não existem à toa. É importante discutir as maneiras com que podemos minimizar desconfortos fisiológicos com os quais somos obrigadas a lidar.
Porque a sociedade patriarcal não leva em conta a nossa biologia. Ficamos ainda mais suscetíveis a coisas como endometriose e síndrome dos ovários policísticos porque não aprendemos a deixar nosso corpo trabalhar sem medicamentos e produtos higienizadores íntimos. Arriscamos sofrer violência obstétrica porque há quem pense que não somos capazes de parir de forma natural. Somos forçadas a parir bebês que não estamos preparadas para ter (quando somos novas demais, quando sofremos abuso sexual, e por diversas outras razões) porque o sistema patriarcal nos quer de incubadoras, sem se preocupar com a nossa autonomia para decidir sobre nossos próprios destinos.
Há meninas que deixam de frequentar a escola quando atingem a adolescência porque menstruam e não têm dinheiro para pagar absorventes – um problema que afeta fêmeas humanas desde os países mais pobres do mundo até os mais desenvolvidos. Mulheres detentas precisam usar panos e papel higiênico para conter o fluxo menstrual porque não se leva em conta a nossa biologia. Até mesmo os airbags dos carros foram arquitetados sem levar em conta as nossas características físicas, segundo se descobriu recentemente.
A materialidade das mulheres importa às mulheres, e devemos nos preocupar com ela. Num mundo que – esperamos – caminha na direção da equidade, não é mais possível continuarmos a fingir que nossa fisiologia não importa. Importa, e nos afeta, e temos que lidar. Há diversas maneiras de fazer com que nossos corpos não sejam obstáculos para nossas realizações, pessoais e profissionais.
Mas, primeiramente, precisamos resgatar um contato com nós mesmas. Precisamos aceitar nossa condição não como uma maldição – porque não é nem deveria ser – mas sim pelo que realmente é. Nossa anatomia não deveria ser nossa prisão, embora eu lamente dizer: muitas vezes é.
Somos julgadas por nossa aparência porque nossas características físicas ainda são compreendidas como ferramentas de atração para o acasalamento.
Não precisamos aparentar estar ovulando todos os dias somente para agradar o olhar masculino. Não podemos fingir que não menstruamos somente porque os homens não menstruam. Não deveríamos ser tratadas como seres esquisitos e que precisam de cuidados especiais por conta daquilo que é da natureza dos nossos corpos.
A nossa fisiologia vêm sendo uma das principais ferramentas da nossa opressão, e há milênios tentam nos fazer encaixar em padrões inalcançáveis – de comportamento e de beleza. Chegamos a acreditar que somos naturalmente submissas e inferiores. Mas chega.
Ou nos amam como somos, ou que sumam.
Temos tarefas importantíssimas a cumprir, como gestar, parir e amamentar. Temos o direito de sermos mães em plenitude, e a maternidade – que é apenas uma parte das vidas de quem é mãe – não deveria ser um calvário ou nos deixar sobrecarregadas de tarefas.
Temos que questionar, por exemplo, por que o anticoncepcional masculino não está sendo o sucesso que deveria ser. Por que pararam as pesquisas sobre ele, mesmo que seus efeitos colaterais sejam muito menores do que aqueles com os quais mulheres precisam lidar, e ainda que ele seja fácil de usar e barato para produzir.
Como não levar em conta tudo o que nos afeta, se nos afeta de forma tão avassaladora? A nossa materialidade importa.
Não nos apaguem com seus discursos misóginos sobre como somos indignas de confiança por “sangrar todo mês e não morrer”. Não nos apaguem por dizermos em alto e bom som que temos cólica. Nós não nascemos “querendo” ter cólica e menstruar. Nós não queríamos estar desconfortáveis com isso. Nós aguentamos porque é a nossa biologia. É o que somos.
Tentam nos fazer achar que deveríamos ser como homens e ficar sem menstruar com pílula. Tentam nos fazer achar que deveríamos parir com cesariana eletiva sem indicação clínica. Tentam nos fazer achar que não deveríamos amamentar, já que existe leite de fórmula. Tentam nos fazer achar muitas coisas erradas, em nós, que são meros produtos da natureza dos nossos corpos.
Sejamos racionais. A nossa biologia não pode ser mudada tão facilmente. Tentam mesmo fazer isso, o que só causa dor e sofrimento. Basta. Não somos objetos.
Por Andreia Nobre
Imagem: Origem do Mundo – Instalação Cubo Rubik
Comments
Comentários