Gênero é plural

Entenda as diversas variações que existem entre o feminino e o masculino

Não é tão simples quanto escolher o banheiro que entrará – o feminino ou o masculino. Nem aos menos tão simples quanto selecionar qual sexo pertence ao preencher uma ficha de cadastro. As questões de gênero são plurais e precisam ser levantadas. Existem muitas dúvidas a respeito: a identidade, o sexo, a sexualidade, a arte. São classificações totalmente independentes uma da outra.

A identidade de gênero está ligada diretamente à experiência de um indivíduo com seu próprio corpo biológico e identificação pessoal. A psicóloga e especialista em atendimento clínico, Ana Paula Denis Ferraz, 28, esclarece que quando falamos de gênero estamos falando de identidade, de como as pessoas se reconhecem sendo no binarismo – feminino e masculino – ou no não-binarismo de gênero.

Ana Paula afirma que para entender este conceito, é preciso voltar à gestação, quando o bebê é designado como homem ou mulher baseado no órgão genital que este tiver. “Neste momento, ocorre uma construção simbólica sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, recaindo sobre aquele ser que acaba de aparecer para o mundo”, conclui. A construção subjetiva desta criança passa a ter o peso do que se entende por ser homem ou mulher de acordo com o discurso social que define “coisas de menino” e “coisas de menina”. Porém, é na relação com o outro e com o meio, e na constituição de identidade, que é possível uma construção única de identidade para cada sujeito.

Pedro Diniz, 22 anos e morador de Uberlândia é um exemplo disto. Homem trans, ele afirma que antes de tudo, isto não é uma escolha e sim uma condição: “Eu não escolhi ser trans, gays não escolheram ser gays, por exemplo. Só somos assim.” Ele relata que enfrenta situações constrangedoras, como precisar mostrar seus documentos para utilizar um banheiro público. “Só a informação pode destruir preconceitos. Também é importante que os processos para retificação do nome e o acesso ao sistema público de saúde sejam mais fáceis”. Segundo Pedro, a criação de políticas públicas que possibilitam a visibilidade da população trans seria uma iniciativa que melhoraria a sua vida em sociedade.

Alguns destes indivíduos buscam procedimentos de redesignação do sexo, incluindo intervenções cirúrgicas e tratamentos hormonais. Nem todos, porém, buscam tais medidas e elas nunca devem ser um requisito para o reconhecimento da identidade de gênero. A sociedade precisa estar alerta para os riscos de propagação de estereótipos negativos ou prejudiciais sobre a população trans, além de referir-se aos indivíduos transgênero usando os seus termos, pronomes, gêneros e nomes de preferência.

Por outro lado, se tratando do conceito de travesti, podemos afirmar que a identidade pessoal pode ser identificada como homem ou mulher, sendo que o ponto de partida também é uma não-identificação com o seu gênero biológico, ou seja, o seu sexo. Para muitos, trata-se de um homem que se veste de mulher, porque simplesmente gosta de ser assim. Na verdade, a complexidade estaria no fato de não se sentirem 100% pertencentes a nenhum dos sexos. Por isso, o(a) travesti manteria características de homens e mulheres, alguns indo mais além e se proclamando como um terceiro gênero.

A travesti Samie Carvalho, 32, ilustradora, por sua vez, opta por ser chamada por pronomes femininos. Ela se mudou para o Japão em 2015, após receber um convite para estudar na Tokyo Design Academy (TDA). Samie afirma que foi uma escolha profissional, mas também pessoal. “Eu era constantemente ameaçada. Não conseguia viver normalmente como aqui em Tóquio. Aqui, consigo um emprego de acordo com meu nível curricular. No Brasil, a única coisa que viam é que eu era uma travesti.” A ilustradora conta que o esclarecimento, principalmente por parte da sociedade, foi fundamental para ela. Samie usa um longo aplique loiro e maquiagem nos cílios, porém diz que não são todos os dias que trabalha dessa maneira. “Tem dias que sinto vontade de ir trabalhar montada. Passo maquiagem, uso salto. Em outros, vou de cara limpa, calça jeans e camiseta. Não sinto vontade de operar nada até o momento, talvez daqui um tempo um implante de silicone.”

O gênero se mostra um conceito plural. Ainda que a desmistificação deste, seja uma questão nova ou distante para a maioria da sociedade, pensar sobre gênero também é pensar sobre liberdade e cidadania.

João Calmon, Pedro Diniz e Charles Roberto como Charlie

 

Segundo Joanna Burigo, mestre em estudos sobre gênero, o conceito é novo no discurso popular, mas estudos sobre o tema existem desde pelo menos a década de 1950. Joanna afirma que não falar sobre gênero é não falar sobre pessoas cuja existência e dignidade estão em risco. Também é não falar sobre o fato de sermos o país que mais mata população LGBTQI no mundo, segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB), mais antiga associação de defesa dos homossexuais e transexuais do Brasil, que apontou 2016 como o ano com o maior número de assassinatos desta minoria.

Uma das saídas para combater este quadro, além da condenação e apreensão dos agressores e ameaçadores, é a mudança de pensamento. Embora seja uma medida que requer mais tempo para se tornar eficaz, abrir a discussão de gênero é possibilitar que seja desconstruído esse preconceito latente e assassino.

O propósito é justamente para que não haja imposição ideológica acerca de gênero. “Discutir gênero na escola, bem como no trabalho, em Hollywood, na família, no mundo dos negócios, na História, enfim, em geral, é discutir as formas com que o gênero pauta nossas vidas sociais”, afirma Joanna. Dialogar é o oposto da imposição ideológica, e discutir gênero não significa prescrever comportamentos, mas sim libertar pessoas das prescrições para que sua existência não seja determina por elas.

O diálogo e a informação podem auxiliar e serem regentes da construção de uma sociedade plural, que compreenda que ser homem ou ser mulher, não é uma condição estabelecida apenas biologicamente. E que estas condições não devem ser coordenadas por padrões hierárquicos e patriarcais.

O conceito de feminino e masculino é muito mais fluído e profundo do que carrinhos e bonecas. Ser homem, mulher, trans, travesti, drag queen, andrógino, ou qualquer outra classificação que for, é muito mais do que se enxerga em um espelho. São posicionamentos em sociedade. E como qualquer outro que já conhecemos, devem ter seus direitos civis e serem respeitados.

FLUIDEZ DE GÊNERO: ENTENDA O CONCEITO DE GENDERFLUID

“Pode me chamar de ele ou de ela, eu sinceramente nem ligo” – João Calmon Cerqueira, 22, formado em jornalismo, declara no começo da nossa conversa. Usando um scarpin preto e batom vermelho, ele demonstra total conforto em ser exatamente como é. Inspirado pelo irmão guitarrista de uma banda de Heavy Metal, João deixou os cabelos crescerem desde os seus 12 anos. Ao entrar em um colégio de ensino religioso, começou a notar que não era tão convencional quanto o que aprendia ser o correto. “Isso não me incomodou nunca e eu estava nem aí para o que os outros estavam pensando”, declara.
João, conhecido nas redes como Adam Mitch, encanta os seus seguidores ao postar seus looks cheios de personalidade e estilo. Geralmente de salto, maquiagem impecável, croppeds e tranças nos cabelos, ele exemplifica o conceito da moda no genêro Genderfluid. “É não se limitar a só comprar roupas só na sessão masculina ou só na sessão feminina, é abraçar todos os tipos de vestimenta e escolher o melhor para você. O genderfluid é a ausência desta separação de gênero. Tudo é aceito como parte dos dois gêneros”. Para ele o correto não seriam existir lojas ou coleções de moda para os genderfluids, e sim, que não houvesse essa separação brusca entre calças e saias.

O conceito de genderfluid é uma identidade de gênero mais bem descrito como uma mistura dinâmica de menino e menina. Uma pessoa que é genderfluid pode sentir-se como uma mistura dos dois gêneros tradicionais, mas pode sentir-se mais menino alguns dias, e mais menina outros dias. Sendo assim, genderfluid não tem nada a ver com os órgãos genitais que se tem, nem sua orientação sexual. Genderfluid é sua forma de se mostrar para o mundo.

ENTRE PURPURINAS, O PALCO E A VIDA: POR DENTRO DO MUNDO DRAG QUEEN

Ser drag queen não tem relação com sexualidade ou gênero: é uma performance artística que apareceu nas noites de Nova York e Londres nos anos de 1960, apesar de constar referências de séculos atrás. O movimento chegou ao Brasil no final dos anos 1980, já bem popular. E, por aqui, Elke Maravilha foi a maior representante feminina dessa arte.

Charles Roberto Trentini, 25 anos é hairstylist, maquiador e performa drag queen como Charlie. “Hoje temos muitas drags mulheres cis e trans também. Mas uma coisa não tem ligação com a outra, eu sei que sou homem e sempre serei” – declara ele, que divulga em suas redes sociais imagens comparando o Charles com a Charlie. Ele conheceu o Drag porque desde muito novo sempre conviveu com amigos que já se montavam. Após surgir o reality show Ru Paul Drag’s Race, se apaixonou pelas drags latinas e começou a se apresentar como drag.

O hairstylist e maquiador acredita que a sociedade está aos poucos conhecendo o Drag, através das músicas, TV e até mesmo nas ruas. Porém, nota que o preconceito ainda se mostra visível. “Aquela imagem underground, marginalizada, ainda carrega muito peso”. Charles acredita que enquanto houver o preconceito contra a orientação sexual de pessoas gay, a Drag vira um fator de marginalidade. Segundo ele, é preciso primeiro abrir a mente para quem são as drags, e só depois entenderão o que elas fazem.

 

Reportagem de Marcelle Tristão
Imagens do texto: arquivos pessoais
Imagem destacada: Gay Genderfluid Combo, via Deviant Art

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