Feminismo ou feminismos?
Somos a favor de feminismos, assim mesmo no plural, porque isso demarca o feminismo como a primeira episteme cujos “galhos” não acabam com o “tronco”.
Explicamos: todas as “vertentes” feministas partem de um mesmo projeto, e o plural indicado pela letra “s” representa sua pluralidade, questionando categorias antes pasteurizadas como “mulher” – definição que nunca deu conta de compreender muitas diferenças.
A pluralidade dos feminismos obvia e ontologicamente não pode abarcar discursos antifeministas, e é preciso que, dentro dessa pluralidade, as pessoas saibam que diversidade não significa “oba oba”. Partilhamos o mesmo feminismo até a pluralidade ser demarcada pelo “s”. Isso não significa que, por causa da heterogeneidade, tudo ou qualquer coisa caiba no conceito.
Muito do debate feminista é questão de perspectiva. Assim, o feminismo é um campo constante de disputas. O fundamento dessa episteme é reconhecer as forças que atuam nas disputas por poder – inclusas aí as forças que atuam nas disputas por poder dentro do movimento.
Quando não usamos o termo no plural corremos o risco de pasteurizar e apagar diferenças importantes entre mulheres – sobretudo diferenças de raça, classe e desejo, mas também de relacionamentos, corpos, idade, maternidade e tantos outros marcadores de identidade e subjetividade. A categoria mulher, fora do feminismo, já é homogeneizada. Fora do feminismo a pretensa unidade entre mulheres já desconsidera diferenças e violenta o direito à diversidade em nome de um determinado grupo tido como representante padrão. Se o feminismo também faz isso, ele se apresenta como datado e obsoleto, fadado à contingência temporal.
A mais preciosa contribuição dos feminismos para todas as teorias que vieram e ainda virão é exatamente estar aberta às diferenças e ao foraclusão (coisas que nem somos capazes de imaginar, mas que fatalmente existirão num futuro que não podemos prever). O que muita gente pensa ser um defeito é, na verdade, marca da vanguarda. Pensar em um projeto epistêmico e político que se constitui como plural é pioneirismo; é oferecer a possibilidade de ruptura de paradigma dentro do próprio modo de produzir e se apossar do conhecimento.
“Ninguém tem controle sobre o feminismo, portanto ninguém pode determinar, definitivamente, o que o feminismo é. Aprender a conviver com essa realidade é, em si só, um passo revolucionário: bradamos que as instituições são machistas, e não podemos esquecer que o próprio conceito de instituição é calcado na lógica patriarcal de dominação. Por isso acho libertador fazer parte de um movimento não institucionalizado, que se autorregula na pluralidade, e que progride a partir de uma diversidade imensa de pontos focais.” Do texto Feminismo online em chamas, publicado em Carta Capital
Se queremos uma sociedade completamente diferente da que se molda com os padrões existentes não podemos falar de oposição. Isso porque a oposição simplesmente nos coloca no lugar oposto ao que já estávamos, mas ainda no mesmo sistema. E não queremos trocar de lugar na relação – queremos modificar a própria estrutura das relações. Ao falarmos em feminismos, portanto, estamos propondo outro sistema de funcionamento social. Com os feminismos, propomos formas e níveis diferentes de alinhar a prática ao discurso.
O feminismo é a primeira episteme que embute em si a materialidade das existências múltiplas – e não é por acaso que se tornou os feminismos. Esta luta interna pode ser muito profícua por exigir mudanças ao saber que não há teorias perfeitas, por saber que todo conhecimento está inexoravelmente em aberto, esperando o porvir.
Os feminismos compõem o primeiro corpo teórico que conseguiu, simultaneamente, a) enxergar e demonstrar o quanto os sujeitos são tão plurais como singulares, b) compreender que determinar que pessoas se adequem a ideais que não representam quase ninguém é um modo de silencia-las violentamente, e c) postular que ser diferente e singular não impede a articulação diante de pautas convergentes, isto é, que unem sujeitos diversos em suas demandas.
Compreendemos o receio de quem defende a ideia de um feminismo singular, especialmente por entendermos que, feminismo ou feminismos, estamos longe de ser um projeto hegemônico. Mas para quem defende a pluralidade e uma sociedade capaz de lidar com as diferenças de forma inclusiva, pensando em conflitos como oportunidades de mudança, operar em uma lógica anterior é retrocesso e violência.
É difícil mesmo lidar com paradigmas feministas. Basta olhar o quanto tretamos a todo momento! Mas é preciso ver as tretas como possibilidades de avanço: elas significam que não há singularidade, ao menos não no sentido de que existe um discurso forte o suficiente para silenciar existências e experiências distintas em nome de uma “universalidade” e/ou de uma igualdade que, factualmente, não existem.
É uma perspectiva que pode ser assustadora. Mas é uma perspectiva, e uma muito mais realista não apenas por ser mais fragmentada, mas também por ser mais compatível com as experiências do corpo, do que vivemos enquanto seres dotados de, e compostos por, matéria e linguagem.
Todas as teorias do que é convencionalmente chamado de pós-modernidade se baseiam em paradigmas inovadores dos feminismos. Estamos em um outro estágio da produção e compartilhamento de conhecimentos, um no qual as universalidades, imparcialidades e unicidades são questionadas pelos saberes oriundos das experiências do corpo – essa dimensão material e concreta tão frequentemente negligenciada ou até mesmo ignorada por muitas outras teorias.
Os feminismos nos precedem, e continuarão depois de nós – e mesmo antes de termos obtido aceitação hegemônica das massas, já deixamos de ser novidade. A história nos mostra que quando continuamos fazendo nossa parte, a tendência é que ideias equivocadas e estereótipos sobre o feminismo fiquem para trás – afinal quem hoje não acha ridícula a ridicularização das sufragistas, por exemplo? E também vale lembrar que, desde pelo menos, Sojourner Truth* mulheres negras batalham espaço nos feminismos reivindicando, dentre outras coisas, o direito à alteridade, dizendo: somos essas aqui e não vamos tentar ser iguais às mulheres brancas para sermos aceitas!
Temos que aprender a lidar com o fato de que não ser uma coisa não significa não ser nada.
Reivindicar alteridade passa pelo reconhecimento do que não se é. Primeiro descobrimos o que não somos diante do que está dado, para depois nos afirmarmos como o que quer que seja. Nos afirmarmos como algo é difícil e a carga semântica do não ser é supervalorizada. Como já indicado, mulheres brancas tendem a não perceber a existência de outras demandas, e isso atrapalha bastante – o homem branco não é a medida de humanidade para as mulheres racializadas, que lutam contra uma estrutura de poder que está nas mãos deles. Assim como eles não são a medida de todas as coisas, como pregava o Iluminismo, eles não podem, por exemplo, determinar como nossa sexualidade deve se manifestar ou a quem devemos amar. E quem nos trouxe essa contribuição valiosíssima foi o feminismo lésbico.
Sempre houve pluralidade. Chamar o feminismo de feminismos simplesmente contempla esse fato. A sensação de segurança que vem com a unicidade é falsa. Quando um feminismo diz não ser uma coisa, isso não significa que ele seja seu oposto. Embora sejamos contra muitas das práticas tipicamente masculinas, não tomamos os homens como a medida do que devemos ou não ser. O pensamento binário não faz parte da nossa lógica.
Para que o feminismo se fortaleça de forma consciente e complexa como ele de fato é, precisamos formar feministas nas diferentes frentes e vertentes e é preciso que a presença das feministas (com sua materialidade diversificada – isto é, seus corpos) esteja por toda parte – nas universidades, nos parlamentos, nas secretarias, nos ministérios, na indústria, no comércio, nas artes… É fundamental que nossas teorias, historiografia oficial e histórias individuais estejam acessíveis, é essencial que ocupemos espaços e cargos estratégicos, é urgente que não desistamos da luta. Que nunca não foi no plural.
Colaboração entre Adélia Mathias e Joanna Burigo**
Imagem destacada: arte sobre detalhe de Three Women of America, de Elizabeth Catlett
* Sojourner Truth foi uma abolicionista e ativista pelos direitos das mulheres. Seu mais famoso discurso, “E eu, não sou uma mulher?”, foi proferido como intervenção em uma das primeiras convenções de direitos das mulheres dos Estados Unidos, a Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, em 1851.
**Adélia Mathias faz doutorado em literatura brasileira, com ênfase na literatura afro-brasileira contemporânea escrita por mulheres. Mulher negra, filha de mãe solteira, feminista e pesquisadora de relações de raça e gênero. Joanna Burigo é publicitária por formação, professora por vocação e feminista por (falta de) opção. Fundadora da Casa da Mãe Joanna, colunista do site da Carta Capital, e mestre em Gênero, Mídia e Cultura pela LSE.
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