O pessoal é político

As catarses sobre abusos, assédios, e as tantas campanhas de mulheres em redes sociais pelo uso de hashtags são importantes, em um primeiro momento de organização, como forma de demonstrar a existência de um fenômeno que nos atinge como um todo: a violência de gênero e sua manifestação generalizada.

Servem, assim, como etapa inicial à articulação coletiva – como ocorrido, nos anos 60 e no contexto estadunidense, nos incipientes movimentos de mulheres, então descolando-se dos demais movimentos progressistas e anti-guerra.

Na época, grupos de mulheres (inicialmente) universitárias, em geral identificadas com a efervescência por mudança que transbordava no país, começaram a se reunir para debater suas condições de vida, o que abriu espaço para que pudessem se perceber como categoria atravessada por questões comuns. Os homens que militavam com elas, de forma mista (mas alienando suas questões), costumavam ridicularizar esses encontros chamando-os de “terapias”, algo que seria oposto ao que faziam, a “política”. Carol Hanish, feminista que participou de muitas dessas reuniões, escreveu um breve (mas potente) relato sobre suas experiências em 1969, demonstrando seu teor:

“Não fizemos muitas tentativas de resolver os problemas pessoais imediatos das mulheres no grupo. Nós selecionamos tópicos principalmente por meio de dois métodos: em um grupo pequeno, é possível para nós nos revezarmos e trazermos perguntas para a reunião (como, O que você prefere/ria, um bebê menina ou menino, ou nenhuma criança, e por quê? O que acontece com o seu relacionamento se o seu companheiro ganha mais dinheiro do que você? E se ele ganha menos?). Então passamos pela sala respondendo às questões a partir de nossas experiências pessoais. Dessa forma, todo mundo fala. No final da reunião, tentamos resumir e generalizar o que foi dito e a partir daí fazer as conexões. […]. Acredito que, neste ponto, e talvez por um longo tempo à frente, estas sessões analíticas são uma forma de ação política. Eu não vou a estas sessões porque eu preciso ou queira falar sobre meus ‘problemas pessoais’. Na verdade, eu preferiria não fazê-lo. […]. Deste modo, o motivo para eu participar dessas reuniões não é para resolver qualquer problema pessoal. Uma das primeiras coisas que descobrimos nesses grupos é que problemas pessoais são problemas políticos”.

É desse caldo que surge a ideia de que “o pessoal é político”, pois os encontros, desqualificados como “terapêuticos”, na verdade serviram como forma de “tomada de consciência” das mulheres sobre sua posição na sociedade, já que foi pelas reuniões informais de “partilha de experiências” que elas perceberam que inúmeras das condições a que estavam submetidas não eram fruto da singularidade das suas vidas, mas algo do âmbito do social, um reflexo das relações de poder no privado.

Na dimensão do mundo de trabalho, dos afetos, do corpo e da própria militância, identificaram questões comuns que as uniam politicamente, percebendo as estruturas que as condicionavam, limitando-as ou reprimindo-as, simplesmente por serem mulheres. Portanto, se tratava de uma tática para descortinar um fenômeno ainda oculto, mas que se pretendia integrar em uma estratégia mais ampla: Hanish conta, no mesmo texto, que ela e suas companheiras levaram 10 meses para chegar ao ponto de poderem articular todas aquelas questões e relacioná-las com as vidas de cada mulher: “é importante do ponto de vista de que tipo de ação vamos fazer”, diz. Foi exatamente por esses relatos focarem na dimensão política das relações entre mulheres (e não na ordem da identificação pelo sentimento, do tratamento de angústias ou de problemas pessoais), e pelo seu encadeamento em uma estratégia que previa outras formas de ação, que não se tratavam de mera “terapia”, mas de “terapia política” (que é o termo usado pela autora).

As correntes de partilha de experiências, reinventadas no meio virtual, podem ser instrumentalizadas tanto para a identificação das imbricações entre o pessoal e o político (fazendo com que demais mulheres possam perceber a dimensão do machismo nas experiências que vivem), quanto para demonstrar esse teor para os demais. Assim, fazer campanhas coletivas para expor violências comuns é uma maneira de mostrar ao mundo o caráter social dessas violências com fins de promover conscientização: retomar que “o pessoal é político”.

Entretanto, apesar de a conscientização e a própria possibilidade terapêutica de fazer um relato serem relevantes, elas precisam ser, sempre, pensadas como etapa que faz parte de um encadeamento maior.

É preciso reconhecer que sofremos violência e é também preciso garantir que ela seja reconhecida, mas a questão de ouro segue sendo o “dali em diante”: no momento em que já experimentamos a “tomada de consciência” vivida pelas mulheres de 69 em sua “terapia política”, o que fazemos com isso?

Não podemos confundir a conscientização dos demais e a “tomada de consciência” das mulheres com a concretização dos objetivos que se pretendem com esses momentos (o fim do assédio e da violência de gênero), nem o acolhimento interno do movimento para mulheres que foram vítimas desses atos com sua automática transposição para a arena política. Para além de seus méritos e limites, essas campanhas nos demonstram, antes de tudo, que há adesão feminina. O grande desafio, ao que parece, é sermos capazes de articular a flagrante percepção da violência, por parte de um número cada vez maior de mulheres, em caminhos práticos, no espaço da ação política e da transformação concreta. Identificar o que há em comum entre nós, politicamente e não em termos identitários, pensar saídas em conjunto, produzir alternativas e buscar formas de mobilização.

Tarefas extremamente difíceis, é verdade, em especial dado o esvaziamento generalizado de atos públicos, por exemplo, da sensação constante de impotência e de estarmos à deriva em uma realidade onde tudo desmancha e nada é possível de ser transformado. Porém, se são hercúleas, também parecem ser fundamentais, pois evitam tanto a progressiva despolitização de campanhas afins, que é uma tendência, quanto o próprio “eterno retorno” presente nos relatos — um ciclo de frustração, de indignação e de exaustão que se retroalimenta (e que acaba, nesse movimento, voltando ao campo subjetivo).

Em suma: a tática é necessária, mas para que ela faça sentido, para que se realize inteiramente e atinja sua maior potência, é preciso integrá-la à estratégia.

Por Marcelli Cipriani
Imagem destacada: pinkshop.com

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