MÁQUINA: subjetividade e militância
Subjetividade: realidade psíquica, emocional e cognitiva do ser humano, passível de manifestar-se simultaneamente nos âmbitos individual e coletivo, e comprometida com a apropriação intelectual dos objetos externos.
A intenção desse texto é refletir e comunicar mais pela vivência do que uma grande formulação teórica, embora a teoria faça parte dessa reflexão. E mais do que comunicar com um determinado alguém, corrente ou partido, a intenção maior é comunicar com pessoas que pensam e querem refletir sobre isso, alguns muitos porque já estão doentes ou porque adoeceram com esses processos.
O sujeito como máquina, a organização como uma empresa
Os partidos e correntes têm um papel histórico importante como ferramenta de organização social, mas que hoje enfrenta uma fase difícil de avanço, pelos vícios das estruturas, métodos, valores, que coloca novos desafios, já que sua capacidade de inovação é menor do que dos tempos do capital.
Gerir e organizar as coisas, os processos e as pessoas não é um problema em si, na verdade é muito justificável e necessário, desde que tenha um compromisso: melhorar a vida e a relação das pessoas. Um vídeo muito interessante é o de um cara chamado Vicent de Gaulejac que fala sobre a lógica gerencialista das empresas: ela serve para atender os interesses de seus donos, sócios e investidores, e não necessariamente a vida das pessoas como costumam propagandear.
Amigues próximos já sabem que tenho bastante contato com o tema da gestão em saúde, mas na verdade acredito que ele serve para qualquer pessoa, pois pode-ser dizer que o gerencialismo está hoje, presente em tudo: na forma como pensamos a vida, nas famílias, nas igrejas, nas empresas, e também está nas organizações políticas.
De forma mais ilustrativa, a lógica gerencialista atua quando se trata a pessoa como um recurso, igual a um recurso material, um número, e não um humano, completo e complexo. (Ex: comemoramos os números de militantes, mais do que a qualidade e profundidade desses vínculos e a capacidade real de formação com qualidade dentro dessas organizações).
- Quando se consideram as pessoas pela sua utilidade, descartando-as quando não possuem mais esse valor de uso. (Ex: quando se coletivizam as conquistas, mas individualizam as dificuldades e crises; quando reduz a pessoa a um papel que ela cumpre, e não por quem ela é e necessidades que tem; quando vemos pessoas que dedicaram anos e nesses anos foram valorizadas, mas a partir do momento que não retornam integralmente seus esforços para a organização, são vistas com desconfiança ou descrédito; quando há mais interesse em saber se a pessoa está militando, do que saber se ela está bem; quando se destrói alguém politicamente somente porque discorda abertamente);
- Quando o quantitativo é confundido com qualidade e os números são mais expressos do que ideias e coerência. (Ex: o número de votos, mesmo que não reflita um trabalho real e enraizado);
- Quando se tenta apreender dentro de esquemas e discursos bem montados uma realidade que é muito mais complexa, mas quase sempre se dizendo suficiente e capaz de representá-la na totalidade. (Ex: quando se tenta responder todas as questões do mundo somente pela macropolítica, como se não houvesse uma dialética com a micropolítica, a subjetividade das pessoas,sendo que nem tudo que é diferente é rasamente classificável de “pós-moderno”; quando a crítica é construída somente ao outro, e não se assume a necessidade de autocrítica como algo saudável, necessário e mais comprometido com uma transformação das instituições);
- Quando nos pautamos por metas e resultados, dando menos relevância para os processos. (Ex: o número de panfletos e jornais distribuídos ou vendidos, mesmo que seus conteúdos sejam escassamente debatidos; número de filiações, mesmo que não haja capacidade de realizar diálogos no cotidiano);
- Quando colocamos as pessoas em constante assédio; um assédio que não é somente direto de um com o outro, mas uma moral do assédio em que as pessoas estão constantemente pressionadas e exigidas do seu máximo, mesmo que isso desrespeite limites biológicos e psicológicos. É quando se exige sempre mais, mesmo que as condições para isso, como o tempo, não sejam dadas. É a disputa indiscriminada de todo o tempo livre, mesmo aquele que deveria ser de descanso e lazer com outras pessoas que não sejam da militância (amigos e familiares). É o pavor ao ócio. É o culto da produtividade. É colocar as pessoas em um ritmo imediatista, com pouco tempo para reflexão, exigindo muitas ações e resultados. (Ex: hierarquia irrestrita da prática; é o estigma de lúmpen; é um nível de exigência de comprometimento, sendo que a organização não terá o mesmo comprometimento com você, e nem incentiva isso para os mais próximos);
- Quando os discursos são mais para promover uma forte adesão, do que para estabelecer um real compromisso com eles e as pautas nelas inclusas. (Ex: falar dos oprimidos para utilizar o discurso como combustível político, mas não se comprometer em desconstruir as práticas de racismo, machismo, homofobia nas relações internas, principalmente de direção);
- Quando a dinâmica é objetiva, em que impera a razão, o concreto, e a subjetividade é entendida como uns instrumento e não parte importante do sujeito para que ele se desenvolva de forma mais plena. (Ex: quando se decide tudo pela lógica; quando se qualifica ou deixa de qualificar algo por seguir só os critérios da razão; saber que a pessoalidade aproxima, mas usando-se disso desonestamente, como se fosse dedicar atenção pessoal à aquelas relações, sendo que isso é homérico de ser controlado em escalas de acompanhamento e poderiam ocorrer mais naturalmente se fosse numa dedicação e abertura real; ou quando a pessoalidade é utilizada apenas para ter mais entrada na sua atenção, utilizando-se dos seus amigos mais próximos ou pessoas da sua convivência para te influenciar; quando fala do sofrimento alheio não porque se solidariza e busca compreender de fato, mas porque há audiência);
- Quando apesar do discurso coletivo, da importância do grupo, a lógica é individual, competitiva, individualizando os méritos e os problemas.
- Quando o coletivo na realidade é um agrupamento;
- Quando se adere mais pelos interesses e vaidades individuais, do que pelo senso de coletividade. (Ex: a lógica do “se fudeu”, mais do que da solidariedade; a maquiagem das tarefas desvalorizadas para que pareçam algo importante para quem é novo; a falta de companheirismo no nível do cuidado com o outro e a manutenção de egoísmos mesquinhos; a exaltação de líderes e figuras públicas, e conivência com o apagamento daqueles que fazem os trabalhos mais duros e invisíveis).
Se esses elementos estão presentes nas organizações políticas, a lógica que impera é muito próxima de uma empresa, e o corpo é considerado uma máquina, suscetível a quebrar e ser descartado. Mas se a dinâmica do capital e o tempo da política pressionam o povo para responder aos ataques dos direitos, e as condições ideias não existem, como agir?
Não há organizações ideais. Não é possível uma organização responder a tudo. Mas aquilo que ela se propõe, propagandeia e o quanto diz ter compromisso, tem que responder, ou se rever para ter respeito com aquilo que se dispõe a pautar.
“Milita que passa”
A prática tem um potencial formativo, assim como a teoria, e nenhuma delas se basta sozinha.
É defendida uma práxis, mas os métodos ainda privilegiam mais a ação. Ser um bom militante nesse contexto muitas vezes significa você dar conta de todo o resto da sua vida (trabalhar, comer, ter saúde, etc), militar e ainda ocupar seu resto de tempo para os estudos teóricos, mesmo que o tempo para isso não caiba nas contas.
Militamos, militamos, militamos, disputamos uma consciência de classe, temos experiências positivas, mas aquela identidade não se renova mais, mesmo mudando de tarefa, mesmo galgando mais na hierarquia política, e os sentidos parecem cada vez mais em cheque.
Persistimos na disputa do poder, fazemos intervenções importantes, e se conquistamos algo, a carga aumenta exponencialmente. No discurso, sustentamos a convicção, no corpo, experimentamos limites quase insustentáveis.
Falamos sobre xs trabalhadorxs, sua saúde e o empobrecimento da sua dignidade (intrínseca à supressão da subjetividade), mas qual o valor que damos à isso com quem está do lado? Comer, dormir, o lúdico, as vivências amplas, o afeto no tempo com os amigos e a família. Colocamos tudo isso em sacrifício sob o discurso de que devemos agir para enfrentar o que faz tanta gente nesse mundo sofrer, colocando um compromisso moral importante, mas quase militar. O assédio é tão grande nesse ponto que aquela relação que parecia uma escolha, uma parceria, vira um infinito de obrigações, justificando posturas e constrangimentos abusivos, e que muitas vezes pouco reflete sobre a vida dxs trabalhadorxs que tanto falamos.
A política tem ainda muitos vícios burocráticos e sádicos, e sabemos que na disputa entre organizações isso é aplicado de forma ainda mais perversa, muitas vezes justificado como a única maneira de combater o outro, cada organização a seu nível, expondo os militantes a vivências bizarras, as quais alimenta-se que é importante suportar. E quem suporta e quanto mais suporta, mais referência é para os seus. O contrário é, muitas vezes, considerado inadequado, fraco e colocado para balanço.
As pessoas que se identificam com pautas contra as opressões, possuem espaço para militar e acumular para a organização, mas não há compromisso de se criar mecanismos e cultura que atentem e protejam mais essas pessoas, de forma equânime, dentro das organizações. Muitas das pautas consideradas setoriais tem dificuldade, há muitos anos (e quantos mais?), de serem compreendidas dentro das práticas das organizações como não hierarquizáveis, e sim transversais, e por isso deveriam ser colocadas em evidência nas nossas relações, não através de um esquema ou regra estanque, mas pela capacidade de imaginação para ter uma postura que se proponha a rever seus privilégios e considerar o outro. Não com listas de certo e errado, do que é ou não machismo/racismo/homofobia/etc mas pelo exercício: imaginando seu lugar, sua vivência, a história do seu grupo (Eu gostaria que fizessem isso comigo? Isso, considerando todo o enredo de opressões, me agrediria?)
Machismo, racismo, homofobia, transfobia, todas as formas de opressão não são expressas apenas por um conjunto de condutas e atitudes, mas pela concepção que uma sociedade doente tem sobre essas pessoas: de que não são gente. As organizações políticas, com diversas denúncias internas, não colocam somente que, por serem parte da sociedade não estão livres de reproduzir seus paradigmas mais podres, mas também revela-se que muito do discurso não tem incorporação, um valor real. Por isso vemos tantas mulheres, mães, negros, LGBTs, pobres, deficientes, aqueles mais excluídos e discriminados, fora das organizações políticas, como partidos, desde o princípio ou são os primeiros a sair, construindo suas vias. Na teoria, as portas estão abertas, as pautas são reconhecidas e essas pessoas são as principais convidadas. Na prática, as barreiras são incontáveis para x pobre, pretx e periféricx permanecer na organização. A barreira não é física, é de compreensão da profundidade dessas pautas, para além do campo do direito. Necessita-se de um interesse não apenas racional, mas humano de trocar com o outro.
Se defendemos que a inclusão dessas pessoas é o mínimo em uma sociedade de privilégios, o tema da instrumentalização merece todo o cuidado. A visibilidade e construção de referência de seus membros muitas vezes se confunde com um uso dessas figuras. Relações são de interesses mútuos, mas principalmente de identidade, construção conjunta. Quando não há a via de mão dupla, são relações interesseiras.
O compromisso da organização com essas pautas, assim como todas as outras, não deve ser somente de espaço, mas de condições, incentivo não meramente verbal e que elas possam se transversalizar de fato, e não apenas como prática ou pauta de um setor, um número de pessoas internas para dizer que representam. Quando a propaganda do comprometimento está muito além do comprometimento real com essas pessoas, suas questões e a luta dentro da sociedade, é uma propaganda desonesta. (Ex: o que fizeram de fato na luta por liberdade de Rafael Braga, desde o começo? Quantas pessoas desses “setores” estão representadas em suas direções? Que mecanismos e acordos coletivos existem dentro dessas organizações para proteger uma maior diversidade de pessoas?)
Como sustentar o sentido da militância nessas condições? Se a política é um campo perverso, com ciclos de ódio, medo e desconfiança para a conquista do poder e da possibilidade de decisão, como responder ao ritmo do capital sem esmagar as pessoas que constroem propostas de alternativa, assim como o capital faz?
Se para essas questões seguimos sem respostas, minimamente deve-se assumir a importância de se preocupar em ofertar mais cuidado com isso, investir nessa discussão coletivamente, do que manter uma postura de “se não há solução, não há problema”, como se a clareza das debilidades não fosse uma sensatez necessária, o mínimo. Envolve também mais cuidado com aqueles que estão mais vulneráveis e oprimidos, no trato e na estrutura. Muitas vezes, o cuidado é mais dedicado àqueles que são considerados “melhores”, segundo um padrão homogenizante que valoriza o mérito, inteligência racional e discursiva, do que aqueles que possuem outros elementos para contribuir e a apontar sobre o que as relações construídas nessas organizações revelam de contradições.
Relações
As relações dentro da militância não são tema menos importante. Ao contrário, deve ganhar mais importância em tempos em que a subjetividade das pessoas é tão comprometida, a auto-estima real para enfrentar o mundo é tão abalada pelo corte de um futuro com direitos mínimos como a aposentadoria. Ainda mais em uma geração como a nossa, em que a depressão, autoflagelamento e o suicídio são assustadoramente mais frequentes e precoces, algo muito menos comum na geração dos nossos pais, que enfrentam conosco a dificuldade de lidar com esse fenômeno.
Mas se as relações na militância são também instrumentalizadas, utilitaristas, ocorre um forte empobrecimento.
A “tática 2” é uma expressão muitas vezes aplicada para quando se seduz alguém à organização não pela política, mas por uma atração pelo afeto. Geralmente, é identificada quando é explicitada uma tensão sexual e considerada desonesta pela clareza que relações afetivas e concordância política não tem sinal de igual entre si. Por isso, afetos não deveriam induzir conscientemente escolhas políticas e nem utilizados como ferramenta para isso.
Posto isso, de novo de forma ilustrativa, podemos dividir o contato das pessoas com a política em dois momentos bem distintos: antes e depois de se organizarem.
Generalizou-se uma tática de forte simpatia, estética, exibição de potência das organizações e discurso de capacidade de inovação para atração da sociedade. O que não é um problema em si, se for proporcional ao trabalho e compromisso da organização, se for expressão externa do que ela é de fato. Mas não é raro observarmos uma gigantização na imagem em altas produções, com baixa correspondência com o que é no seu trabalho real e cotidiano. Como o marketing empresarial, muitas vezes parece contraditório que o tamanho e a mensagem do outdoor seja tão desproporcional com o que contribui para as pessoas. Busca trabalhar o subjetivo de forma instrumental, restrito ao imaginário que construirá na mente das pessoas.
Além disso, pensando que a primeira impressão é a que fica, é caricato como treinam-se os militantes a aproximarem pessoas com um nível de simpatia e acolhimento inicial, com acompanhamentos que parecem uma oferta pessoal de amizade, que cria uma trama afetiva sobre o sujeito, de forte implicação com ele, sua presença, participação, contribuição, sendo que é claro que não é possível corresponder cotidianamente, parecendo mais desespero do que uma oferta real de convivência. É propaganda enganosa, é seduzir sem se comprometer, sendo que em um mundo tão falso e vendido, as pessoas procuram algo que crie identidade real, não algo que gere mais desilusão.
Cada partido e corrente faz também a propaganda de sua organização como se fosse uma forte unidade, mais democráticos, que fossem instrumento dos desejos do povo, que inovaram a forma de fazer política, mas internamente estão corroídos nos mesmos problemas e disputas, e as práticas parecem na verdade colocar os sonhos como instrumento da organização.
Depois, como um paradoxo, as relações de coletividade parecem se tornar de tarefas, as de companheirismo parecem se tornar de competição, a união parece um salve-se-quem-puder das tarefas difíceis (ou nem tão difíceis, como manter o espaço coletivo limpo), o ânimo inicial parece uma cadeia de queixas, a leveza e alegria vão se tornando um desânimo, as escolhas parecem ter sido convertidas em obrigações militantes, o desejo de estar presente parece ser substituído pela necessidade de se ausentar, o convencimento da importância é contaminado pela desconfiança da instrumentalização. Se defendemos a prática, a coletividade é um bom exemplo dela, pois ela não ocorre pelo agrupamento de um time funcional, ela se manifesta pelo vínculo real.
A organização e suas estruturas parecem ser de menos democracia e forte centralismo, menos coerência e mais um caos assustador, menos um ciclo de confiança para a construção conjunta e mais um vício de ódio que não parece ter compromisso de se quebrar, menos construção coletiva e mais troca de farpas e denúncias, menos trabalho real e mais trincheira teórica e digital.
A cultura dessas relações e dessas estruturas são deformantes. Pela primazia da fala e da disputa, perdemos a capacidade de escuta e troca. Pelo imediatismo e ansiedade generalizado, a comunicação é violenta e reativa, e perdemos a capacidade de esperar o tempo daquilo que não podemos controlar, como o tempo do outro. Pela importância de provar uma verdade ou contrapor, todos os espaços e relações são de disputa. Pelo costume de superar diversos limites, acredita-se que não há limite algum, como se tudo estivesse sob sua governabilidade, e força-se todos os limites como se isso fosse uma marca sempre positiva, mesmo que na prática seja violência. Pelo hábito das disputas de proposta X proposta, sempre acreditamos que quando o outro se cala, vencemos. Perdemos a capacidade de conversar com quem pensa diferente, pela obsessão em convencer. Em nome de grandes disputas, alimenta-se disputas mesquinhas e virtuais. Está montada uma deseducação que privilegia os obsessivos e controladores, sem escuta.
Para sobreviver a esse meio, o ego e a vaidade são um combustível. Criamos grandes figuras, grandes papéis, grandes quadros, grandes dirigentes. Coroamos o desgaste com um reconhecimento público, visibilidade, mas também mais responsabilidade, um aumento da carga, mais um alteres na ponta do aço para ser cada vez mais forte e seguir crescendo, sem parar. Não há tempo para parar. Seduz-se pela vaidade, para a pessoa não perder uma suposta inegável oportunidade e responsabilidade de cumprir algum papel central para a organização, o momento ou a pauta, sendo que muitas vezes, na verdade, é uma indispensável oportunidade da organização seguir acumulando com você.
Aqueles que se dobram em três para corresponder e seguir numa evolução exponencial de expectativa e reconhecimento nesses termos, claramente vão ter efeitos não somente negativos do desgaste, mas positivos. “Trabalhando” o triplo de um ritmo normal, alguma coisa vai se desenvolver em triplo: uma habilidade, um conhecimento, alguma sagacidade ou espectro da experiência; o que aumenta a adesão.
Há aqueles que terão a escolha por corresponder a esse ritmo, e também condição material ou de tempo, e pertencerão a um grupo célebre e distinto no imaginário da organização: o dos dirigentes. E de várias maneiras, seja pela visibilidade ou poder, seguirão reconhecidos e ocupando esse imaginário e referência. As direções são e seguem sendo majoritariamente masculinas, brancas, de héteros, com condição financeira para essa trajetória; os demais seguem sendo indistintos, mesmo que com filhos, sem condições materiais, desgastados com a opressão cotidiana. Defendemos cotas para as estruturas públicas e privadas por entendermos que a presença daqueles que são excluídos socialmente de direitos transformam a consciência dessas estruturas, mas praticamos e defendemos a meritocracia internamente. Há exceções? Sim, com uma história de resiliência incrível, e como não poderia deixar de ser, serão exemplos, referências, parte da propaganda de que esse tipo de organização funciona e prioriza xs oprimidxs.
A intenção é questionarmos isso, porque nesse contexto perverso há ainda uma cegueira que parece a de um médico tosco: que não olha, não toca e não analisa a demanda e a realidade do sujeito para a sua prescrição científica e racional, e não entende porque não há adesão do paciente ao tratamento e ainda o culpa por não aderir. Não seria por que o “tratamento para o capitalismo” é descolado da realidade da maioria e o deixa mais doente?
Há externamente um forte discurso de liberdade, mas internamente é militar.
Adoecimento e crise: não é somente do indivíduo
Sofrimento faz parte da vida, não há vida sem. Por isso, aprendemos que desses processos podemos não só nos machucar, mas também aprender e nos descobrir mais fortes. Mas o problema é quando o sofrimento parece dominar o seu cotidiano, quando parece que não é mais possível reagir. E é especialmente difícil quando o sofrimento vem não somente das supostas divisões da sua vida: pessoal, familiar e trabalho/estudo, e identificamos que vem também da militância política, justamente aquela que acreditamos que é o que nos coloca na contracorrente do sistema capitalista e nos permite fortalecer enquanto classe para a construção de alternativas, aquela que empregamos nossa identidade e sonho, que parece que dá sentido dentro de um mundo duro, estreito e sob a lógica do lucro.
Difícil de acreditar, pra quem se envolve e se dedica por anos, que a militância pode moer também. Que aquilo que pareciam sacrifícios justificáveis, agora não encontram justificativas. Que aquilo que você acreditava ser um coletivo, é muitas vezes mais um agrupamento. Que aqueles com que você se identifica e convive diariamente, tem menos possibilidade de amizade e companheirismo do que parece. Que aquilo que você achava que era uma dedicação, muitas vezes se confunde com exploração.
Às vezes, é tão difícil que, apesar das desconfianças, alimentamos uma incredulidade e nos esforçamos mais um pouco, nos sujeitando de novo ao sofrimento, que hoje em muitos casos ficou evidente que também era violência, algo que propagandeamos repudiar tanto.
Aos poucos, percebemos que estamos doentes há mais tempo do que imaginávamos: ansiedade, hiperatividade, irritação, tristeza, negligência com o corpo (gripe, alergias, candidíase, surtos, overdose de remédios, café, cerveja e porcaria da rua) e alienação com sua subjetividade. Que, apesar de nas redes sociais parecer pura motivação e realização, o cotidiano é cheio de cansaço e queixas, com uma distância grande entre o que é dito e o que é sentido. Que, às vezes, você não se reconhece em algumas atitudes, e sente vergonha porque aquilo não devia ter acontecido em alguma conversa em que se prioriza uma situação de troca e respeito. E ficamos muito tempo pensando: por quê? Por que essas coisas aconteceram? Por que me sinto assim? Qual responsabilidade nossa e da organização sobre isso?
E não tem uma resposta imediata e satisfatória, demora-se muito tempo para organizar uma realidade que trabalha com confusões, paradoxo entre o discurso e a prática, nos mobiliza emocionalmente mas trata o cotidiano de forma extremamente lógica e racional, demora para sairmos do limbo emocional e termos energia para revisitar essas vivências e sabermos que sentidos, bonitos e feios, tivemos nelas.
Nosso adoecimento não é individual, é coletivo. Não é um adoecimento com atestado e remédio eficaz, nem está em uma parte específica do corpo, mas é a parte mais importante dele, a subjetividade que é íntima à sua identidade e que pode te comprometer física e emocionalmente a ponto de você achar que é uma doença terminal. E para essa sensação, não é suficiente dar o tempo que for necessário, é importante dar apoio. Por isso que esse texto é mais pra nós, do que para quem tem todas as justificativas montadas para não entender tudo isso.
Fica claro que a crise não é individual, ela é da organização, do sistema. Mas a crise é costurada em várias bilaterais para manter a aparência individual, e nunca ganha espaços coletivos. E da mesma forma que uma empresa individualiza e descarta os funcionários de anos, as organizações políticas fazem também, e todos os estigmas já são habituais (“ele quebrou”, “virou pequeno-burguês”, “entrou numa linha pós-moderna”, “abandonou a via coletiva pelo seu egoísmo”, isso porque estou lustrando comentários pejorativos).
Fica evidente que se exigia um comprometimento do sujeito, que a organização não tinha com ele. É mais um número, mais um voto. Que o que parecia reconhecimento, era uma bolha de vaidade, frágil como sabão.
Saímos, e somos colocados a enfrentar individualmente esse vazio, essa confusão da nossa identidade.
A crítica é confrontar a realidade. E em um dado momento percebi que muito da experiência da militância, mesmo que me parecesse coerente, contagiante, lógica, me sentisse convencida, parecia distante da realidade que vivia e via, acumulada de incômodos. Mas de pouco vale direcionar a crítica a uma determinada pessoa, direção, corrente ou organização, porque o número de pessoas que “quebraram” em várias organizações por motivos similares, mostra que não é um problema isolado, muito menos individual. E também porque não adianta direcionar para aqueles que já se blindaram dessas críticas e, com isso, fizeram uma escolha por não escutarem e se eximirem dessas discussões. Para muitos deles, nós somos o problema. Justamente nós que tantas vezes fomos colocados como solução.
Sensibilidade X Surdez
Não é fraqueza sentir que essas vivências foram violentas e não é possível suportar mais.
Todos sentem e interpretam essas vivências da mesma forma? Não, porque somos diferentes na socialização, desenvolvemos características diferentes e interpretamos o mundo de maneira diversa. Mas o grave é estigmatizar a sensibilidade, essas percepções, como se fossem “sensíveis demais”, frescura ou um problema, frente a um parâmetro muito bruto e agressivo de relações na política. Sendo que é plenamente possível considerar a sensibilidade, formulação e crítica com mais diversidade. Se as pessoas já estão aderidas por uma identificação, as organizações só têm a ganhar em potencializarem-se como ferramenta, e pararem de fazer das pessoas as ferramentas.
Essa discussão não tem objetivo de desqualificar totalmente o que se faz e quem milita dentro de organizações como partidos, mas somar uma crítica à forma como concebemos essa militância e o que é que se está reproduzindo. Se isso tudo não foi uma vivência de todos, não há um desejo ou praga de que isso se generalize, mas alertar que esses temas merecem discussão responsável há muito tempo e estão adoecendo pessoas (mesmo alguns que não se percebam ou não assumam) e isso não deve ser admitido.
Que as pessoas não precisam chegar em um nível tão grande de sofrimento, adoecimento, desilusão e digestão longa dos fatos para que isso seja debatido com compromisso (não comitês de ética fakes que apenas as direções compõe ou jogar a auto-organização do setorial de mulheres contra as próprias mulheres).
Esse não é um exercício novo e nem tem intenção de ser, há muita gente pensando com comprometimento sobre isso, mas é um exercício difícil para quem se enreda na luta por uma sociedade mais digna, mas entra em um outro circuito doente, adoece e sai solitário dessa vivência.
Aos que passaram pela militância partidária e não se reconhecem mais, não pela elaboração teórica da política, mas pelas práticas dessas organizações: nenhuma vergonha ou dúvida. Que revisitem com orgulho suas vivências positivas e não sintam que têm uma dívida com alguma instituição política: é genuíno e a atuação política ou passado não morre por conta disso. Podemos ter intervenções muito fortes e ser resistência em muitas lutas e novas táticas.
Que a falsa coletividade não esmague nossa individualidade, não seja entendida como egoísmo, mas uma afirmação de que outras formas de pensar e de fazer são possíveis e devemos defender o espaço.
Já fui parte de tudo isso, e hoje em dia todas os argumentos se esgotaram para continuar, principalmente quando sou lembrada novamente pelo meu voto útil do que qualquer outra coisa, mesmo por aqueles que se colocavam como tão próximos.
Sinto orgulho de muita coisa, mas a vergonha e desgosto com essa lógica me exigiram uma escolha e que já estava clara que não era isolada. Agradeço todas e todos com quem pude militar intensamente, mas ainda mais aquelas pessoas, não à toa maioria mulheres, que foram companheiras nesses momentos difíceis, construíram essas críticas em conversas amigas, e mostraram que as coisas valeram mais à pena pela amizade, solidariedade e humanidade que construímos, o que pra mim é mesmo revolucionário e nos afasta de reproduzirmos a mesma lógica capitalista das empresas sobre nós.
Por Sofia Yoneta
Imagem destacada: prospect.org
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