Considerações sobre casas imperfeitas (Ou: Manifesto Contra a Auto-Sabotagem pelo progresso na divisão de tarefas)
Não existe um dia da minha vida que eu não pense a respeito de tarefas domésticas. O que fazer, quando fazer e, principalmente, quem deve fazê-las.
É uma questão pertinente: moro com meu parceiro, que trabalha fora de casa mas tem horários relativamente flexíveis, e nossa filha, que aos quase 4 anos, está começando a entender que o universo não dá conta magicamente de sua rotina diária. Eu, por minha vez, trabalho de casa, ou seja, tenho a sorte de não precisar enfrentar longas jornadas pra chegar ao meu local de trabalho, e posso organizar compromissos ao redor de uma agenda não ortodoxa. Mas mesmo assim, parte do meu dia envolve fazer uma grande esforço mental pra não ceder às pressões das tarefas domésticas – afinal, elas estão ali, visíveis, presentes, exigindo silenciosamente minha participação no mesmo horário em que devo estar focando no trabalho. E diariamente preciso exigir de volta, não só do meu parceiro e da sociedade, mas de mim mesma, a compreensão de que não é minha obrigação participar. Porque se eu me entregar, não vou só estar deixando de trabalhar: vou estar contribuindo para a preservação do patriarcado.
Estendamos essa conversa para o âmbito dos relacionamentos (e aqui peço perdão, pois falarei sobre o já over-represented universo hétero). Se você gosta, realmente gosta de cuidar da casa, tudo bem – esse texto não é pra você. Assim como não é para: solteiras, casais LGBT, ou para quem esteja em situação de violência doméstica. Para todas as outras que moram com um parceiro, com ou sem filhos, e principalmente ganhando menos, vem comigo.
A mulher está inserida no mercado de trabalho, em suposta plena capacidade de competição, já há algumas décadas. Digo “suposta” porque, na prática, o buraco é mais embaixo. Quando o assunto é competir com a porção masculina do mercado, são poucas as que conseguem entrar de cabeça, principalmente depois de casar e/ou ter filhos. O motivo? Tarefas domésticas. Parece escandaloso pensar que em pleno século XXI a mulher ainda se incomode com algo que há tanto tempo luta-se para superar: a ideia de que cuidar da casa e dos filhos é um papel intrinsecamente feminino. Não acredita? Nem eu.
Fui ali ver as estatísticas. Segundo dados do PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) entre 2001 e 2012, por exemplo, o tempo dispensado em tarefas domésticas é de 8 a 9 horas semanais para os homens e de 20 a 25 horas para as mulheres. Para as mulheres casadas com filhos menores de 14 anos, os números chegam a 29 horas semanais. Pra trabalhadoras já sobrecarregadas, é a famosa “Dupla Jornada”.
Outra pesquisa recente dos Institutos Patrícia Galvão e DataPopular revelou que 71% das mulheres casadas não recebem nenhuma ajuda dos companheiros para cuidar dos filhos, ou lavar, passar e limpar. Nesta mesma pesquisa, 75% das mulheres declararam considerar suas rotinas extremamente cansativas. Compreensível. Sabemos então que a a divisão de tarefas dentro de casa não é justa, e que os homens ainda levam a melhor quando o assunto é tempo livre. E por que diabos isso acontece, quando o homem contemporâneo se mostra, supostamente, cada vez mais disposto a botar a mão na massa, compartilhar o peso do cotidiano, ser parceiro?
Não sei. Mas sei que podemos não aumentar a parte de responsabilidade que nos cabe nessa situação deprimente. Um estudo do DataPopular de 2013 divulgou que 98% das mulheres que trabalham fora também crêem ser as principais responsáveis pelas tarefas domésticas. Outra pesquisa feita pela PUC do Rio de Janeiro em 2009 demonstrou que mulheres qualificam a participação dos maridos como uma “ajuda”, bem-vinda e festejada. Surpreendentemente a pesquisa revela: “quando questionamos o que deveria ser modificado no outro, ou seja, o que o outro não faz, mas deveria fazer, surpreendeu-nos a resposta da maioria, que acreditava não haver necessidade de mudanças” – palavras do autor, Bernardo Jablonski*. Sabemos, não só informalmente, mas estatísticamente, que a percepção social de que o fardo doméstico deva, e vá, ser carregado por ombros femininos, persiste – bem como continua firme a ideia de que o homem, quando pode, quer, ou é solicitado, “ajuda”. Será que estamos nos auto-sabotando?
Sabemos que trabalhos domésticos não são um dever feminino. Trabalhos domésticos são o que são: uma labuta necessária, mas enfadonha, repetitiva, que não leva a nenhum tipo de enriquecimento particular. Coisas como uma casa limpa e arrumada, roupas passadas, comida servida na hora certa são alicerces do cotidiano, e têm valor, claro – são pilares para a construção de algo maior; a casa, afinal, é base para a evolução da sociedade. Há quem os considere recompensadores: cozinhar, por exemplo, é uma paixão para muitos, e fazer uma faxina muitas vezes tem o efeito de tirar um peso das costas. Tem gente que diz que não consegue pensar direito ou fazer nada enquanto tudo ao seu redor não esteja arrumado (eu achava que era uma delas, até perceber que eu não tinha energia ou vontade de fazer mais nada depois de passar três horas ajeitando tudo). Mas será que executar tarefas domésticas – ou fazê-las ~direito deveria estar no topo das prioridades femininas? Você por acaso não cederia de bom grado 29 horas semanais pra fazer outra coisa? Principalmente se essa outra coisa envolvesse desenvolver mais suas habilidades e capacidades para pensar e agir no mundo?
Vamos às estatísticas outra vez: em 2013 o IBGE revelou que os salários pagos às trabalhadoras representam 72,7% do valor pago aos homens no Brasil. Existe uma ligação entre esse cenário e a divisão de tarefas? Com certeza. Uma mulher que dedique 29 horas por semana às tarefas domésticas (além das que ela já usa para trabalhos que não sejam de casa!) não pode conseguir competir com o mesmo afinco no mercado de trabalho, afinal ela está, pura e simplesmente, sobrecarregada. Não consegue estudar pra desenvolver sua carreira, não consegue alçar cargos mais altos, não consegue ganhar mais, e assim se dá um círculo vicioso de desvantagem. Em um ~mundo ideal, as pessoas dividiriam as tarefas domésticas de maneira justa e igualitária, e qual adultos responsáveis contribuiriam para que ninguém ficasse preso a uma situação na qual juntar roupas jogadas no chão e arear panelas se estendesse por mais tempo que o estritamente necessário. Uma conquista para as mulheres não deveria ser a soberania dentro do reino doméstico, mas sim ver seu reino cuidando de si mesmo, se auto-gerenciando, enquanto ela se ocupa de desbravar o mundo e tudo aquilo que lhe foi negado ao longo da história.
Eu fiz questão de me posicionar na linha-de-frente dessa luta – algo que continua a me surpreender, afinal, nunca pensei que fosse precisar. Quando engravidei, estava em plena ascensão profissional, viajando e trabalhando longas horas. Eu não notava poeira nem que ela se transformasse em monstro e gritasse no meu ouvido. Daí virei mãe, e do dia pra noite me vi soterrada por uma montanha de tarefas domésticas que consumiam todo o meu tempo, minha energia, e meu espaço mental. Não foi escolha minha; ou pelo menos não parecia que tinha sido. O que aconteceu foi que no momento que engravidei, sem perceber, me encaixei, ou me deixei encaixar, nos mesmos padrões contra os quais sempre lutei.
Acontece, e muito mais mais do que esperamos. Alguns fatores fisiológicos podem causar impacto nas nossas circunstâncias econômicas; dar à luz, amamentar e cuidar de um bebê, no meu caso, foram incompatíveis com a rotina profissional que eu costumava ter, portanto fui obrigada a desacelerar – por consequência, passei a ganhar menos. Quantas das suas amigas, colegas e familiares passam por isso? Algumas desistem de afiar o próprio potencial depois da gravidez – que, para muitas, é um set-back. E há quem não desista, mas se escraviza à uma rotina definida pela culpa e pela exaustão…
Eu não desisti, mas também não me deixo escravizar. Faço as tarefas no tempo que julgo estritamente necessário. Foi preciso repensar, me reinventar, reorganizar, recomeçar e, pra isso acontecer, precisei exigir mais tempo e mais espaço. Precisei ser firme e exigir que o trabalho doméstico não fosse exclusivamente meu papel. E precisei – e ainda preciso – lembrar todo os dias que ter uma casa imperfeita é okay, porque isso pode significar que meu cérebro, minhas habilidades e meu potencial estão sendo usados em outras frentes. Sair do ciclo de desvantagem requer consciência, tempo e dedicação.
Penso que existe espaço pra uma proposta, para quem achá-la válida: nos acostumarmos com casas imperfeitas, ignorarmos a desordem enquanto as tarefas domésticas não forem divididas igualmente entre você e quem mais morar sob o mesmo teto – ou seja, quem mais colabora para o acúmulo de funções extras, em detrimento da sua independência. Não estou propondo aqui que vivamos na sujeira, mas sim que um leve filme de poeira em cima da estante, algumas louças na pia e a cama por fazer não sejam significantes de uma pessoa preguiçosa, mas sim de uma pessoa ocupada com tarefas importantes, tais quais acabar com o patriarcado.
E para acabar de uma vez por todas com o velho argumento “mas eu faço melhor, por isso acabo fazendo”, lembre-se: tarefas domésticas não são experimentos científicos. Ninguém nasce sabendo usar o aspirador de pó ou a máquina de lavar, e nenhuma mulher vem programada geneticamente para saber limpar bundas de bebês. Tudo isso, acredite se quiser, se aprende mais rápido do que falar “Cromossomo XY”, independentemente do gênero.
Eu sou uma negação na cozinha. Meu parceiro cozinha infinitamente melhor, e ficou tacitamente decidido entre nós que as refeições e compras de supermercado ficariam por conta dele. A louça fica por minha conta, e tudo certo. Nem sempre ele está disponível para pilotar o fogão (sempre quis usar essa expressão em um contexto masculino, ha!) – doenças, trânsito, tédio… whatever, shit happens. Aprendi o básico da cozinha, e hoje ninguém sob meus cuidados passa fome – e ainda lambe os beiços. Da mesma forma, nenhuma criança anda com fraldas sujas quando sob os cuidados dele. Se ele aprendeu a tirar manchas de roupas? Ainda não. Mas pra ser honesta, nem eu sei – nossa filha anda por aí parecendo um Pollock. Qualquer dia desses ele, ou eu, perguntaremos pro Dr Google como se faz isso. Ou não.
Nada é território feminino/masculino. Lava roupa/dá banho na filha/passa aspirador aquele que estiver menos ocupado, ou mais incomodado com a tarefa por fazer. Eu me treinei pra não me deixar incomodar mais do que o necessário. Toda a vez que eu penso em passar meia hora dobrando roupas, eu repenso: “hm, em meia hora consigo ler três capítulos do meu livro. Tiro o pó de trás do sofá ou pesquiso aquele curso que há tempos quero fazer?” Nem preciso debater. “Boto as meias de molho, ou sento pra polir mais um parágrafo do meu último projeto?” Já era. Deixo tudo que é doméstico pra alguma hora livre da semana, uma hora que estivermos todos renidos, de preferência com música tocando alto – assim todos podem ajudar, a tarefa acaba mais rápido e sobra mais tempo pra ficarmos juntos e felizes (ou separados e felizes). Se a balança da injustiça começar a pesar mais para o meu lado (como acontece), nem pestanejo: “Bom dia filha, hoje o papai vai levantar com você – e já aproveita pra escolher sua roupa de hoje!”, ou “Tô saindo pra correr – não esquece de estender as roupas? Valeu!”
E assim funciona pra mim. Se sua situação é parecida com a minha, espero que funcione para você também. A única regra de verdade é que nem ele, nem eu, temos permissão pra exigir casa, comida e roupa lavada quando chega em casa.
Não é meu dever. É nosso.
Por Thais Mendes
Imagem: FEMMA Registros Fotográficos
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