Lições sobre gênero em um campinho de futebol público
O que um campinho de futebol público pode nos ensinar sobre questões de gênero?
Começa com a busca de um lugar para jogar.
Estávamos em grupo, sete ou oito mulheres. Tênis e chuteiras nos pés, camisetas dos times do coração no corpo e bola debaixo do braço. Uma semana antes, tínhamos marcado a primeira pelada juntas, por um grupo no WhatsApp. Nem todas se conheciam. Uma amiga adicionou a outra e formamos o grupo, que tinha um único foco: jogar futebol regularmente, por lazer. Escolhemos um lugar de uso público porque não queríamos ter custos fixos naquele início.
Chegamos à quadra da Rua da Aurora, no Centro do Recife, por volta das 19h, de uma quarta-feira. O espaço estava ocupado por uma partida de futebol masculino. Havia cerca de 20 homens. Checamos com alguns a que horas terminava.
Enquanto aguardávamos, montamos barrinha no estacionamento do lado da quadra, onde marcamos os primeiros gols. Esperamos por algumas horas, até perguntarmos novamente, quando recebemos respostas irônicas e desdém. Demorou até finalmente termos nossa chance e o adiantado do horário restringiu o nosso tempo de jogo.
Na semana seguinte, voltamos à Aurora em um dia diferente, na tentativa de encontrar o espaço livre. Mas o que nos esperava era uma nova disputa. Outro grupo masculino forçava seu jogo em vez do nosso, mesmo o nosso grupo tendo chegado antes à quadra. “Nós temos mais direito que vocês. É questão de hierarquia”, nos foi dito. Travou-se a batalha. Depois de longa discussão, ironias e “piadas” objetificadoras, eles cederam.
A partir desse episódio, nosso grupo investiu em mobilização e organização coletiva para ocupar a quadra e garantir o espaço no dia escolhido. Semana após semana, articulamos nossos encontros via redes sociais e convidamos mais mulheres para ampliar o número de participantes e sentir mais segurança na manutenção da pelada.
Isso aconteceu há um ano e meio. Com o tempo, a pelada ganhou nome: Aurora F.C., revelando certo senso de pertencimento resultante da articulação coletiva para garantir um direito que não veio sem enfrentamento. A ocupação e a resistência à tentativa de afastamento do espaço público fortaleceram o grupo que, desde então, semanalmente, joga às segundas-feiras na quadra pública pela qual teve que lutar.
Hierarquia
O que levou o nosso interlocutor a sugerir mais merecimento por parte dos homens à quadra? Quais significados pode ter a “hierarquia” mencionada por ele ao tentar nos interpelar a abrir mão do direito de uso de um campo de futebol público?
A pesquisa “Por onde andam as mulheres? Percursos e medos que limitam a experiência de mulheres no centro do Recife”(1), revela o seguinte dado: 63% das pessoas entrevistadas afirmaram sentir medo de circular pelo centro do Recife. Dessas, 70% são mulheres. “O medo da mulher no espaço público é mais uma expressão do patriarcado. (…) é produto da relação de dominação dos homens sobre as mulheres ainda hoje existente em nossa sociedade”, aponta o estudo.
Um bom exercício pode ser observar as quadras e campos públicos em diversos locais. De maneira geral costumam ser mais ocupados por homens. “O campo de futebol é uma metáfora para o espaço público em geral, onde as mulheres ainda não têm a mesma autonomia e liberdade para navegar que os homens têm”, afirmou Joanna Burigo, mestra em Gênero, Mídia e Cultura e co-fundadora da organização Guerreiras Project, que usa o esporte para debater questões de gênero.
A hierarquia, ou seja, a ordem fundada na priorização do homem e na subordinação da mulher, evocada por nosso oponente, está implícita. É o mecanismo que proporciona o privilégio de certos espaços aos homens; e às mulheres, limita ou mesmo nega o acesso, afetando tanto a relação com a cidade, quanto à prática do futebol, esporte majoritariamente masculino.
Direito à cidade, futebol e resistência
Por sua vez, a presença feminina estabelecida na quadra da Rua da Aurora passou a atrair mulheres desconectadas da rede primária que formou o grupo. Moradoras do entorno, interessadas na prática do futebol, se integraram à pelada. Se antes a quase exclusiva presença masculina distanciava mulheres da vivência daquele espaço, a representação fez o interesse pela quadra se manifestar, estabelecendo novos vínculos sociais, gerando apropriação e ressignificação da área, que até então, não era frequentada pela maioria das integrantes do grupo, domiciliadas em áreas distintas da Região Metropolitana do Recife.
Em uma publicação em rede social, uma das jogadoras do Aurora F.C. afirmou: “Segunda é dia de resistência, é dia das mulheres ocuparem os espaços públicos dessa cidade e dizerem que vai ter mulher jogando bola e resistindo sim”. O futebol se tornou, portanto, uma ferramenta político-afetiva de reivindicação. E a persistência no espaço de jogo, um manifesto por direitos iguais ao esporte e à cidade.
Por Larissa Brainer
Texto originalmente publicado na Urtiga – INCITI-UFPE
Imagem destacada: Zackary Canepari, via GuerreirasProject
1. Dissertação de Mestrado de Lúcia de Andrade Siqueira; Universidade Federal de Pernambuco, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano. 2015.
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