Branco é o novo branco
É hora de as mulheres brancas abandonarem a prática de autenticar – e lucrar com – as experiências de mulheres de cor. Por Aura Bogado, originalmente publicado em inglês no The Nation em 16 de Agosto de 2013.
A produção de narrativas sobre escravos tornou-se moda entre os círculos abolicionistas de meados do século XIX. Estas narrativas permanecem profundamente poderosas, mas cada uma delas é enquadrada por uma introdução branca, que autentica a experiência negra. As circunstâncias e os modos como a prática branca de verificar a vida dos negros que habilmente traçaram sua própria libertação mudaram, mas o papel das pessoas brancas na criação destas narrativas não mudou. A mais recente manifestação desta prática pode ser observada na série de sucesso da Netflix Orange Is The New Black.
Vi pela primeira vez um cartaz para a nova série em uma plataforma do metrô. A palavra “black” próxima a mulheres de todas as cores em macacões de prisão me fez balançar a cabeça em decepção, mas logo esqueci esta imagem, junto com todas as outras imagens racistas pelas quais sou diariamente cercada. A outra vez que vi uma referência à série foi em um outdoor gigante desses de vídeo, durante a grande marcha que aconteceu em Nova York após a absolvição de George Zimmerman em conexão com a morte de Trayvon Martin. Ao mesmo tempo em que milhares de pessoas saíam às ruas contra a supremacia branca, acontecia uma ironia intensa: a representação fictícia de mulheres negras agitando uma briga dentro da prisão enquanto uma mulher muito branca e muito loira parecia chocada com o horror daquela violência. Grosseiramente tuitei, “Racismo acontecendo na esquina entre as ruas W35 e 6. Isso nunca acaba. Nem nós. #HoodiesUp”, e ali linkei o vine com imagem do outdoor para ilustrar a minha decepção.
Desde aquela época muitos amigos e colegas vêm tirando tempo para me explicar que eu estou errada sobre minha reação instintiva a OITNB. Eles apontam que a série é baseada em um livro, cuja autora, Piper Kerman, passou um tempo na prisão. Eu respondo que Assata Shakur escreveu um brilhante livro intitulado Assata: An Autobiography, que inclui detalhes sobre seu tempo como a única mulher em uma prisão masculina, e ainda assim não vi isso transformar-se em uma série de TV. Seria oportuno fazê-lo agora que Shakur é a primeira mulher na lista de terroristas mais procurados pelo FBI.
Defensores de OITNB repetidamente dizem que Kerman é engajada no ativismo pela reforma prisional. Ela pode muito bem ser. Mas o problema aqui reside no fato de que seu engajamento foi reembolsado através de um tipo muito diferente de investimento, por parte de editoras de livros e impérios de mídia como Netflix. Eu não duvido que Kerman queira mudanças no sistema de justiça criminal, assim como não duvido que ela tenha criado uma pequena indústria, para si mesma, a partir disso. O que começou há cerca de uma década, quando Kerman começou a vender camisetas onde estava escrito “Free Piper” (“Piper Livre”) através do Paypal. Como autora de um best-seller, que vendeu os direitos das histórias de mulheres que não são ela, Kernan lucrou com a criminalização de mulheres negras e latinas, alvos desproporcionais do sistema prisional.
Mas quase sempre os fãs de OITNB me dizem que preciso dar uma chance para a série. Que se eu conseguir assistir os dois primeiros episódios, ficarei contente no terceiro. Assim, assisti seis episódios inteiros, achei vergonhoso, parei e espero ver nunca mais assistir outro em toda a minha vida. Com poucas exceções, vi estereótipos descontroladamente racistas: mulheres negras que, além de serem fanáticas por frango frito, são chamadas de macacos e “olhos loucos”; uma mãe porto-riquenha que é conivente as atenções sexuais que um guarda prisional branco dá para a filha; uma mulher asiática que nunca fala; e uma mulher Latina louca que se enfia no banheiro para fotografar a própria vagina (e tal imagem, pornográfica, é indiscriminadamente mostrada no episódio inteiro).
É com isso, ao que parece, que alguns dos meus amigos e colegas estão se divertindo. Eu rejeito que isso seja inofensivo. Se estamos viciados em OITNB, então estamos viciados na droga do espetáculo racista, com imagens de ódio criadas por uma imaginação branca, para o lucro e a fama. O que mais me incomoda é que tantas pessoas me disseram odiar os cartazes e as ridículas fotos de divulgação da série no Facebook, e disseram querer desligar a TV ao assistir OITNB durante os primeiros episódios, seguiram assistindo, e “compraram” esse lixo que mantém nossos olhos colados a algo de que – como sabemos – não deveríamos sequer estar gostando.
Vou reconhecer que a OITNB criou um papel incrível para uma mulher negra trans, interpretado por Laverne Cox, uma mulher negra trans na vida real. E eu não posso negar que a série criou uma folha de pagamento para muitas atrizes não brancas. Mas, novamente, assim como a prática de 150 anos atrás, durante o auge da era das narrativas brancas sobre a escravidão, experiências negras são primeiramente autenticados por uma pessoa branca – neste caso, uma mulher branca cuja passagem pela prisão não é nem pode ser um substituto para a violência institucional dirigida a mulheres de cor no sistema de justiça criminal. É 2013, não 1861, e não precisamos de Piper Kerman ou de alguém como ela para substanciar o que já sabemos.
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