A misoginia de cada dia com The Fall
Antes de escrever esse texto eu havia compartilhado no meu Facebook o chororô que foi assistir o último episódio de The Fall. Nos dias seguintes, algumas amigas comentaram comigo que estavam olhando, amando e já sofrendo porque eram poucos episódios.
Mas o que mais me deixou orgulhosa — pensando em todo potencial de alcance que um seriado em uma plataforma como a Netflix tem — foi o caso de uma amiga em especial. Ela comentou comigo que depois de ver The Fall começou a prestar mais atenção nos machismos escondidos no dia a dia. ❤
Se os filtros contra o machismo de uma pessoa foram alterados por causa de UM seriado, gente, já estou realizada. Porque no fundo é isso que torna essa forma de entretenimento tão poderosa! Nós bem sabemos como é difícil ser mulher e como nos policiamos na luta interna entre cultura e informação — onde uma poda e a outra liberta.
Mas voltando à série, quero começar dizendo que eu já tinha uma relação de admiração pelo trabalho de Gillian Anderson. Acho que a personagem dela mais marcante, antes de The Fall, foi na série Hannibal — que já acabou, infelizmente — em que a atriz fazia o papel de nada mais nada menos que a psiquiatra do canibal.
Eu não sei o que ela tem, mas com esses dois papéis eu percebi nela uma pessoa tão maravilhosa. Elegante, de olhar inteligente, com um jeito que te faz querer ouvir over and over again suas análises pertinentes e na ferida. Talvez tenha sido por isso que resolvi assistir essa série que ninguém falava sobre e que surgiu no meu catálogo da Netflix.
Estava ela na capa, ao lado do ator gatinho Jamie Dornan, que também faz o Christian Grey de 50 Tons de Cinza — o que pra mim é uma bela bizarrice: a mesma pessoa como sadomasoquista em um lugar e serial killer em outro.
Pra quem não conhece a história, The Fall se passa principalmente em Belfast — Irlanda do Norte — que se bem lembrarmos costuma ser a cidade dos dramas ensanguentados das séries de TV. Diria que é um destino relativamente comum quando se quer trazer “foras da lei”. E, nesse solo, cresce o ódio de um homem por muitas mulheres, também conhecido como misoginia.
Não lembro no total quantas pessoas ele matou, pois no seriado se trazia muito os nomes das mulheres. Acredito que tenha sido uma forma de manter suas identidades, algo que geralmente se perde nesses contextos de muitas mortes, onde vidas se tornam apenas números. Então, nesse caso não interessa quantas foram e sim que o crime aconteceu e se repetiu algumas vezes.
Spoiler alert!
A polícia local começa a se deparar com mortes de mulheres, jovens, com praticamente a mesma aparência física — morenas de cabelo liso — e resolve pedir ajuda de uma profissional com muita experiência nesses casos: Detetive e Superintendente Stella Gibson, diretamente de Londres.
Ela chega e eu preparo a família para o meu desaparecimento nos próximos dias. The Fall é uma série irlandesa — não sei se tu está familiarizado com produções de outros países — pois os dramas pastelões americanos não fazem parte do enredo. Se há necessidade de poucos ou mais episódios é por ser fundamental. A gente só agradece quando tem mais que 6.
Vamos logo aos spoilers, porque o seriado é foda demais pra ficar medindo as palavras.
Well, a suspeita de traumas e abusos sofridos pelo asssassino, Paul Spector são confirmados na segunda temporada. Ele viveu em alguns orfanatos até atingir a maioridade, pois sua mãe havia se matado quando ele tinha 8 anos, se não me engano. Em um desses lares temporários para meninos, havia um padre que obrigava as crianças a se tocar e masturbar os adultos responsáveis pelo espaço na frente dos demais.
O policial chefe de Gibson, Burns, foi o responsável por desvendar quem era o padre por trás do abuso infantil. Mas na época do interrogatório, mesmo sendo confirmada a presença de esperma em um dos altares que era usado para a exibição, o acusado não confirmou ter sido próximo de Spector.
Ou seja, treta.
Spector não só foi abusado, como no período de um ano foi o “pupilo” do dito padre. Ninguém sabe ao certo o que foi feito com ele, mas conhecemos o destino desse trauma.
Conversando com minhas amigas que viram também a série — gosto de trocar teorias — algumas sentiram pena do personagem pela sucessão de traumas: perda da mãe que se enforcou + orfanato + ser abusado e exposto sexualmente.
Foda? Com certeza! Justifica seus crimes? Nunca.
O ódio que ele sentia pela mãe o ter deixado sozinho no mundo, somado ao abuso sexual, resultou em voyeurismo (pessoas que gostam de observar outras tirando a roupa, ficando nuas, transando, uma curiosidade pelo privado de terceiros), sequestro e morte por estrangulamento de muitas mulheres. Em seguida, para “purificar” as vítimas, Spector as banhava, pintava as unhas de algumas, escolhia uma lingerie que o agradava, as coloca em poses e tirava fotos — como se fossem bonecas, algo que nunca teve vida antes.
Por outro lado, em meio à trama, novas personagens vão fazendo parte da história e fica muito claro o poder da empatia feminina.
Não sei quantas pessoas estavam na equipe investigativa, mas lembro que tinha mais de uma mulher. Inclusive, uma policial que não era detetive, por ter tido um trabalho tão bom em ajudar uma vítima foi “promovida” no caso por Gibson, que queria ter profissionais por perto.
Em todas as mulheres envolvidas na investigação eu percebia muita empatia, inclusive na advogada de defesa. Da policial que vigiava o hospital em que Spector passou uns dias até Gibson que estava envolvida com cada pelo do seu corpo, todas sentiam um pouco a dor das vítimas.
Não houve tempo para compreender como funcionava a cabeça do serial killer. O que se tem certeza é do nível de envolvimento e planejamento que ele tinha com cada mulher. Horas de observação até encontrar uma brecha para entrar nas casas, algo que ele confirma ser muito fácil, “pois as pessoas tem a falsa sensação de segurança e esquecem de acionar seus alarmes.”
Mas vamos falar da parte boa. Gibson era uma profissional foda, sem deixar de ser feminina e sexual.
Ela se veste com muito bom gosto – sem tentar ser masculina – inclusive usando salto alto quando está afim. O fato de ter boa autoestima (algo que precisa ser cultivado), revela um cuidado consigo mesma, confirmando a teoria desse amor próprio, também, na vida sexual.
Mas o que o desejo da detetive tem a ver com a história? Exatamente nada. Porque assim, o serial killer não transava com nenhuma das mulheres que ele matava. Ele sentia prazer em observar, capturar e matar. Mas, como temos outros homens nessa história, o machismo se apresenta.
Stella é uma mulher bonita, com requinte e que sabe o que quer. Afinal, ela se conhece muito bem.
Vamos lá. O que acontece quando uma pessoa quer transar? Ela procura por outra pessoa que também tenha interesse e, se houver desejo mutuo, há a possibilidade de se compartilhar esta vibe. Fim.
Só que ainda não.
Quando se é uma mulher, outras são as variáveis. Quem será a outra pessoa é muito importante, porque vai que seja alguém que não respeita o outro? Que usa o evento pra provar aos demais sua sexualidade e poder? Vamos lembrar que há quem acredite ter sempre o dominante e o dominado nesses casos.
Muito bem, Gibson estava afim de transar e acabou transando algumas vezes com seu chefe, em um momento no passado, antes do reencontro para resolver o novo caso nomeado “Musicista” — definitivamente criatividade não fazia parte da vida policial.
Pois bem, eles estão juntos em Belfast para desvendar um crime e, como eles tinham um histórico carnal, isso dava ao atual boss o direito de comê-la quando ele quisesse. Simples assim.
Eu não sei onde essa regra foi construída ou quem disse que ela existia, mas assim, as pessoas só transam quando elas estão afim. O fato de já ter havido intercurso não dá direito vitalício ao corpo alheio.
Tudo esclarecido, Burns — policial chefe — entende depois de longas conversas que o corpo é D E L A e E L A não transa com quem ela não quiser. Mas, aparentemente, não fica claro que não existe posse sobre o corpo de quem tu já transou (ou de qualquer outra pessoa).
Um novo policial entra para a equipe e Gibson se interessa pelo seu corpinho. E a casa cai! De onde vem a cobrança? Vamos ver se tu adivinha. Do machistinha que foi trocado! Como os homens sofrem nessa vida, minha deusa.
Pera que não acabou ainda.
Ânimos acalmados, o novo boy — que tem o porte físico parecido com o de Spector, após fluidos trocados, resolve ter a brilhante ideia de uma DR sobre sua insegurança. Eu acho essas conversas super importantes, mas assim, pensar um pouco antes de falar sempre ajuda.
O jovem estava com a sensação de que Gibson desejava o serial killer através dele, pela semelhança na idade e aparência. E que por isso ela tinha ido para a cama com ele imaginando como seria com Spector.
Pausa pra respirar, contar até três, porque burrice tem limite, mas não tem idade.
Então Gibson, com toda a sua paciência e inteligência, explica através de uma história, porque ela não deseja um serial killer misógino (acho que vou lembrar pra sempre dessa parte):
Uma mulher, eu esqueci quem, disse que perguntou a um amigo por que os homens se sentiam ameaçados pelas mulheres. Ele respondeu que eles tinham medo que as mulheres rissem deles. Quando ela perguntou a um grupo de mulheres por que elas se sentiam ameaçadas pelos homens, elas disseram: temos medo que eles nos matem.
Mic drop.
Não sei tu, mas eu adoro discutir pontos de vista. Então, se tu teve uma percepção diferente ou percebeu algo que eu deixei passar, manda um alô e a gente continua o papo.
Por Gabriela Teló Bertolazi
Artigo originalmente publicado no medium da autora, de onde também vem a imagem destacada
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