Crazyhead e as mulheres que se defendem sozinhas

Acaba ano, começa outro e é inevitável se pensar, nem que seja rapidamente, no que tu fez ou gostaria de ter feito. Assim, racionalizando, facilita um pouco os planos pra 2017, vai.

No meu caso, já aceitei que se eu tivesse que nomear minha relação com séries a palavra seria “vício”. Em consequência, andei lendo muito menos do que costumava. Não querendo fazer listas e me apegar a desejos que não vão se realizar — acho muito difícil fazer planos para um ano. Muita coisa acontece em um ano. Posso fazer pra três meses, acho mais viável.

Mas por que eu assisto a tantas séries?

Com certeza porque eu as amo! Sem falar que elas são representações de estereótipos e histórias baseadas na verdade de alguém. Quem nunca se identificou com alguma série que atire o primeiro brigadeiro.

Criei uma rotina onde elas se encaixam perfeitamente na hora do almoço, as vezes no lanche da tarde — uma mais rapidinha de 30 minutos ou, se a pauta tá tranquila, vai um mais longo mesmo — e quando não tenho compromisso-trabalho de noite um outro ep. não faz mal a ninguém.

(isso quando as coisas estão tranquilas. quando entro num flow maluco de trabalho passo dias sem seriado. não morro, mas lembro que não assisti nada 😛 )

Mas vamos a atualidade. A situação é a seguinte: recesso de final de ano me permitiu colocar as séries que eu já via em dia. Não saíram novos episódios, porque todo mundo parou para beber uns champagnes, então, simplesmente, fui ficando sem nada para assistir.

Nesse momento entra uma notificação do Netflix no meu celular — já me livrei dela — ou no meu e-mail. Não olho na hora, porque não sou obrigada a cair na tentação dos alertas, mas quando abro a plataforma está lá, logo na homepage: 90 NOVAS SÉRIES E FILMES E HORAS SEM LEITURA.

É como se eles soubessem que eu estou sem nada no meu pc para assistir. Ao menos pelo próxima semana, porque logo saem novos episódios :)

Confesso que tenho um ritual para escolher séries e filmes. Costumo olhar a nota no IMDB antes de me aventurar em novas horas na frente do computador. Se a média for maior que 7, dependendo do meu humor, ela entra pra lista dos vistos. Importante lembrar, séries muito novas costumam demoram um pouco para serem avaliadas, afinal alguém tem que assisti-las para isso. Se não me engano, qualquer pessoa pode avaliar no IMDB, então não tem uma mafia interesseira por trás — o que me passa confiança.

Justificada não brevemente meu momento, eis que me deparo com Crazyhead. A capa da série já me chama atenção: duas gurias em cima de um carro como se fossem donas da cocada de maracujá com uma com taco de baseball e a outra com bastão retrátil.

Olho a nota, 7.1. Ok.

Assisti o primeiro episódio e sério, achei muito engraçadinho. O jeito de Raquel falar o tempo todo sobre genitálias me lembra meus colegas de escola na puberdade, que queriam convencer todo mundo que já tinham transado, ai não paravam de falar em pornografia. O que evidenciava a sua falta de prática sexual.

Resolvo ver nos detalhes se foi criado por uma mulher, porque realmente acreditei que pudesse ter sido. Que homem cria uma série onde mulheres andam por ai BATENDO em, basicamente, homens que estão com o demônio, literalmente, no corpo?

Mas foi um homem, o que me dá uma pontinha de esperança na vida terrestre.

Talvez a seguinte frase da série, que me fez vir aqui escrever sobre ela, justifique o meu espanto:

Boyzinho: “Você deveria esperar aqui. É muito perigoso.”
Raquel: “Você acha que ter um pau te torna imune ao perigo? Fala sério”.

Há! onde tatua isso, gente?

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Momento amor de amiga — os looks da série são muito vida real.
Do tipo: não preciso de uma roupa justa de borracha pra salvar o mundo

Crazyhead não entra nas minhas séries mais amadas e desejadas, mas pra desanuviar a cabeça ela bem que ajuda. Humor, “terror”, drama, ficção, tudo isso ela oferece com pontapés girl power.

Porque, convenhamos, não é sempre que a gente vê duas gurias se defendendo na porrada, com sotaque britânico e tendo como pano de fundo as amizades femininas e não o crush.

O que movimenta os episódios, além de se defenderem dos boys endemoniados, são as lutas para vingar a morte do pai de Raquel e do sequestro da amiga de Amy, Suzanne. A relação com o pai não era lá uma coisa maravilhosa (novidade), o que nos deixa com uma história de amizade entre mulheres que se viram sem precisar da figura masculina.

But, como todo mundo sabe, amigos brigam e Crazyhead não fica na superficialidade das amizades. A dupla Raquel e Amy tem algumas discussões e brigas quando uma tenta proteger a outra de, podemos dizer, um relacionamento abusivo. [Spoiler] O boyzinho que Raquel estava pegando só deu em cima dela para usá-la como canalizadora do portal do inferno.

Se trouxermos para vida real, muitas são as amizades que se abalam por causa de relacionamentos abusivos. É difícil para uma mulher ver outra se diminuindo e desaparecendo por causa de um relacionamento que pensa apenas nas necessidades do homem.

Também se torna complicado ficar na amizade quando o papel das amigas fica de alertar over and over again, manter ligado o radar contra o machismo e continuar do lado para quando a coisa ficar tensa. Porque uma hora, como tanto foi dito em Crazyhead, “a merda bate no ventilador”. São nesses momentos que o poder do amor se manifesta. A pessoa está ali sendo desacreditada, porque quem está em um relacionamento abusivo dificilmente percebe ou escuta aos demais, e mesmo assim as teimosas amadas ficam ali segurando a barra.

Acho bem pertinente e interessante, também, os estereótipos apresentados, mesmo que simbólicos. O psiquiatra, Callum, que ninguém sabe ser o responsável por organizar os encarnados, se revela, primeiramente, como uma pessoa que ambas podem confiar — que quer o bem delas. Um homem branco, com poder econômico, reconhecido pela comunidade pelos seus feitos é, na verdade, um misógino.

Basta observar a relação que tem com sua parceira da maldade, Mercy, que ressalta em certo momento de forma tragicômica, “não fez um bom negócio encarnando em uma mãe solteira”. Dá muito trabalho pra quem não sabe, o que não ajuda na destruição do mundo.

Do começo ao fim, sempre que o doutor se referia a Mercy era para diminuir, humilhar ou exigir resultados que ninguém poderia oferecer. A partner sempre se defendia, mas fica evidente o interesse de Callum em apenas usar as pessoas para conseguir alcançar seus objetivos.

Sem falar do fato dele criar um clube do bolinha para caçar Raquel, que é mulher, sua amiga Amy, que é mulher e representa perigo, pois está ajudando-a s se defender dos boys sem vontade própria.

Ah! não posso esquecer de mencionar a trilha sonora. Achei uma delicinha. Não tenho certeza, mas se bem me lembro a maioria das músicas eram com vozes femininas ❤

Não menos importante, a protagonista Raquel é uma mulher negra além dos padrões de beleza. Com seu cabelo natural solto o tempo todo, o que a gera insegurança não é o corpo — que nunca surge como debate, simplesmente porque não tem nada para se dizer — mas sua habilidade de ver seres que não são desse universo. Algo que realmente é diferente.

E para chocar a sociedade, as gurias não lavam a boca com sabão. Palavrão o tempo todo, porque a vida real é assim, amor. Mulher fala nome feio, de sexo em detalhes quando faz sentido e se declara pra melhor amiga enquanto bate na cara do machismo.

Comentei no começo que Raquel exalava desejo sexual reprimido com comentários sem medida. Well, depois de sua primeira experiência o desejo continua só que com um tom de conhecimento, já que agora ela sabe um pouco do que gosta. Trazer analogias como “esperma frio ser sinônimo de um homem com o corpo possuído” é uma das proezas dessa história que toca o tempo todo no ponto mais importante do universo masculino: o pênis.

“Você vai acabar com o mundo por esse mentiroso? Foda-se, ele é um mentiroso de merda!
Não acabe com o mundo por causa do pau mole dele. Você é uma mulher forte e independente. Você é como a Beyoncé!”

Ai como eu ri!

São apenas 6 episódios que eu assisti rapidinho. Achei bem do maravilhoso começar o ano sim, de levinho, com surra de mulher foda que não precisa de macho para as defender. Novidade: mulher nenhuma precisa.

Por Gabriela Teló, originalmente publicado no medium da autora e reproduzido aqui com sua autorização. 

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